Pritama Brussolo transformou o próprio processo de criação a partir da arte produzida por pacientes esquizofrênicos.

Samuel Barros, mais conhecido como Poeta, é dono de uma banquinha na feira da torre e trabalha com artesanato há mais de 40 anos. Pritama Brussolo é formada em moda e buscou a pós-graduação em Artes na UnB porque queria se aprofundar mais no lado artístico da produção com tecidos. A história dos dois se cruzou em oficinas de arte para pacientes esquizofrênicos conduzidas por Pritama para a pesquisa de mestrado. Poeta, que sofre com o mal há três décadas, encontrou amigos com quem pudesse conversar e trocar experiências. De quebra, as lições de sensibilidade dele e dos colegas ajudaram Pritama a redescobrir a arte dentro de si.


Em uma das sessões da oficina, Poeta trouxe uma pintura feita pelo neto dele. Por cima das cores, desenhou os contornos de uma figura humana. “Foi o desenho dele que me inspirou a adotar na pesquisa o conceito de apropriação – que significa criar a partir da arte produzida pelos outros”. Foi o que Pritama fez: os delírios e a arte dos pacientes serviram de inspiração para a instalação que ela produziu ao final da pesquisa usando manequins e roupas como matéria prima. As obras foram expostas na Galeria Espaço Piloto da UnB em 2010 na exposição Pele e Osso, que reuniu trabalhos de pós-graduandos do departamento de Artes Visuais.


Para Pritama as roupas nunca foram apenas roupas. Durante a graduação o interesse dela já se voltava mais para a produção de peças conceituais. “Os professores me alertavam para que os modelos que eu produzisse fossem funcionais – pudessem ser vestidos pelas pessoas e comercializados”, conta.  “Mas para mim eles eram um meio de expressão, quando eu conseguia representar um conceito por meio das roupas eu ficava satisfeita, não via mais a necessidade do acabamento final”. No fim das contas, o trabalho de conclusão de curso dela foi uma instalação – com peças de roupa expostas para o público – e não um desfile como era mais comum.


EXEMPLO -
 A inspiração de Pritama na arte é Lygia Clark – famosa por produzir objetos usando roupas como elementos estéticos e pela influencia em movimentos culturais importantes, como a Tropicália. No início da década de 70, a artista lecionou em Paris inaugurando uma abordagem sensorial, na qual o espectador participava ativamente da obra de arte. A metodologia foi aplicada mais tarde como uma forma de tratamento para pacientes com transtornos psiquiátricos.


Aliado a influência de Lygia, Pritama teve um contato com o lado obscuro da mente que a motivou a mergulhar no assunto – relacionando psicanálise e arte. Quando lecionou em curso superior de moda em 2008, já em Brasília, espantou-se com o fato de uma parcela considerável da turma tomar remédios tarja preta – que só poderiam ser consumidos sob orientação médica. “Os motivos eram os mais variados: desde transtorno bipolar até dificuldade de dormir a noite”, conta Pritama. “Fiquei sensibilizada e tentava ajudar os alunos, eu não tinha como ignorar o problema deles porque isso afetava diretamente o meu trabalho”, conta.

Foi movida por esse sentimento misto – de ajudar pessoas com transtornos mentais e do desejo de se aprofundar no lado artístico da moda – que ela prestou a seleção para o mestrado em Arte da UnB. Em 2009, Pritama começou o curso e, em agosto do mesmo ano, as oficinas juntos a pacientes do Instituto de Saúde Mental, no Riacho Fundo I. Sob a orientação do Professor Nelson Maravalhas, ela começou a interagir com os pacientes. “No início eu propunha um tema específico em cada sessão para que eles trabalhassem por meio da pintura”, conta. “Eu acreditava que eu poderia ajudar eles a encontrar a cura”.


PRODUÇÃO ESPONTÂNEA -
 Em vez disso, a proposta do professor Nelson Maravalhas foi que Pritama liberasse mais os pacientes na produção das obras de arte. “Passei a permitir que a produção deles fosse espontânea”, conta a pesquisadora. Depois de dez encontros aplicando as práticas temáticas, ela passou a fornecer material de colagem, pintura e desenho para que os pacientes escolhessem como e o que iriam expressar.


“A partir daí eles passaram a colocar para fora as próprias angústias e um pouco do que permeava seus delírios”, conta. “Uma das pacientes – que chamei de ‘Cigana das Cobras’ na dissertação – era obcecada pela morte e expressava temas relacionados a ela em todas as obras que produzia”, explica Pritama. “Outro – que recebeu o pseudônimo de ‘Jesus, Minha Casa e Eu’ – sempre produzia imagens de Jesus”.

Se a cura dos pacientes não pode ser alcançada, ao menos as atividades da oficina fizeram muito bem para eles. Poeta – que acabou servindo como um intermediário entre a Pritama e os outros pacientes – ficava muito preocupado com a “Cigana das Cobras”. “Eu tinha medo de que ela fizesse uma besteira”, conta Poeta. “Depois que ela passou pela oficina a morte deixou de ser a coisa mais importante da vida dela”. Pritama também percebeu um processo positivo em “Jesus,Minha Casa e Eu”. “O último desenho que ele fez foi um homem de bigode que dizia ser ele mesmo”, conta. Na opinião da pesquisadora, de tanto buscar o outro “Jesus, Minha Casa e Eu” acabou se encontrando.


CORPOS-ESCULTURA -
 As histórias dos pacientes sensibilizaram tanto a artista que na hora de produzir suas obras ela utilizou alguns elementos das produções de seus pacientes. “O esquizofrênico tem dificuldade em perceber o limite entre o eu e o outro – resolvi usar isso como inspiração”, conta. Pritama usou a técnica moulage, na qual as roupas são montadas diretamente sobre o manequim, sem um desenho prévio. Os corpos-esculturas - nome que a artista dá a suas obras - eram formas de representar os delírios e alucinações dos pacientes. Em Paraíso 1 – Os Guardiões, os espectadores podiam interagir com a obra. “Você podia colocar a mão em uma das mangas e apalpar um monte de bolinhas, criando um apelo sensorial para a obra", explica. "Porém quando você fazia a mesma coisa em outra que estava atrás da escultura não encontrava nada". Para Pritama, o contraste entre as sensações era uma forma de representar o vazio que os pacientes sentiam.


Outra obra, Legião de mim mesma, partiu da experiência relatada pelo paciente “O Criador dos Mundos”. “Ele acreditava que existiam vários planetas medievais e pré-históricos, todos colonizados por clones dele mesmo”, conta Pritama. Segundo ela, a expressão “legião de mim mesmo” era usada pelo paciente quando ele falava a respeito dessa multidão. “Para representar essa ideia a obra projetava sombras na parede que eram como clones da original”. A experiência do mestrado transformou a forma como Pritama via a própria arte. “Pude me expressar mais livremente já que não precisava me preocupar se os modelos seriam vestíveis”, conta. “Também passei a separar melhor o que era a produção artística e a psicanálise”. Atualmente Pritama continua a desenvolver trabalhos nos dois campos de atuação de forma independente.


Para o Poeta as oficinas eram uma oportunidade de interagir com outras pessoas que também sofrem com a esquizofrenia. “A possibilidade de se expressar não era novidade para ele”, conta Pritama. “O importante era estar no meio do grupo”, complementa o próprio Poeta – que gostava de desenhar temas relacionados à Brasília nos encontros. Na feira da torre, ele produz imãs de geladeira a partir de madeira talhada para vender. Ganhou o apelido porque também fabrica poesias, mas essas ele não vende: distribui em tiras de papel. “O livro é manicômio das palavras. Deixe-as soltas que elas vão onde quiserem”, escreve em um dos versos.