Universidade de Brasília integra consórcio internacional de pesquisadores de seis países que estudam benefícios da terapia

André Nicola/FM UnB

 

O plasma de convalescentes, retirado do sangue de quem já se recuperou da covid-19, pode ser benéfico no tratamento de pessoas com comorbidades infectadas pelo coronavírus, desde que estejam no estágio inicial da doença. Esta é uma das conclusões de um estudo que envolveu oito centros de pesquisa em seis países, do qual a Universidade de Brasília (UnB) faz parte. Os resultados foram publicados em dois artigos na revista científica JAMA Network Open, no último dia 25. 

 

>> Confira o artigo com o resultado da pesquisa sobre o efeito do tratamento com plasma de convalescentes em pacientes hospitalizados por covid-19

 

A proposta inicial dos pesquisadores era verificar se o plasma (a parte líquida do sangue) de convalescentes poderia ser utilizado no tratamento da covid-19 em pacientes hospitalizados, o que não foi verificado. “Não conseguimos observar um efeito benéfico do plasma de convalescentes em pacientes internados. Essa é a primeira conclusão e é de longe a mais importante”, explica o professor André Nicola, da Faculdade de Medicina (FM).

 

Ele liderou as atividades do projeto no Distrito Federal e explica as descobertas: “Algumas diferenças foram observadas entre os pacientes que receberam plasma de convalescentes e os pacientes que não receberam, mas os benefícios terapêuticos pareciam acontecer somente em algumas pessoas”. Esses pacientes eram justamente aqueles que possuíam algum tipo de comorbidade, como diabetes e problemas cardíacos, e estavam no estágio inicial da infecção da covid-19.

 

Diante do resultado, os cientistas passaram a elaborar uma ferramenta: uma espécie de calculadora destinada a médicos. O objetivo é que os profissionais possam inserir os dados dos pacientes infectados e avaliar se eles fazem parte do grupo que pode se beneficiar do tratamento com o plasma de convalescentes ou não. A ferramenta é gratuita e já está disponível on-line, aberta ao público.


>> Confira o artigo com as informações sobre a ferramenta criada para avaliar quem pode se beneficiar do tratamento com plasma de convalescentes

O professor da Faculdade de Medicina da UnB André Nicola liderou o projeto no DF. Foto: Arquivo pessoal

 

ENSAIOS CLÍNICOS – Em 2020, foi feito um ensaio clínico com plasma de convalescentes no DF, em uma colaboração entre a UnB, o Hospital Universitário de Brasília, o Laboratório Central de Saúde Pública do Distrito Federal (Lacen-DF), a Fundação Hemocentro de Brasília e o Hospital Regional da Asa Norte (Hran).

 

“A ideia era recrutar 200 pessoas. A gente paralisou o estudo quando tinha recrutado 34, porque foi em um momento em que começaram a sair estudos que sugeriam que o plasma não ia funcionar muito bem na população de pacientes internados”, explica André Nicola.

  

>> Pesquisa com plasma sanguíneo de pacientes curados pode mudar cenário da covid-19

 

Ao mesmo tempo, outros estudos do consórcio internacional já dispunham de um grande volume de amostras, o que permitiria uma análise a partir de uma ampla base de dados. Ao todo, 2.341 pacientes participaram do projeto.

 

A médica infectologista do Controle de Infecção do Hran, Joana D’Arc Gonçalves da Silva, participou da pesquisa na etapa de ensaio clínico. “A nossa participação foi na captação dos pacientes, na seleção, aplicando o termo de consentimento esclarecido e ministrando a medicação. Foi um momento em que o hospital estava bastante cheio, um momento crítico da pandemia, e o estudo naquela ocasião foi muito bem aceito pela instituição”, relata a médica.

 

Ela enfatiza que os ensaios clínicos no hospital foram conduzidos em período de alto grau de tensão da pandemia: “A gente estava em um momento de busca por fármacos que pudessem diminuir a gravidade da doença ou mesmo curar. Ainda não havia perspectiva de vacina, foi um momento tenso porque havia competição de fármacos e estudos ao mesmo tempo”.

 

A infectologista conta que, como a orientação dada ao público era aguardar o agravamento dos sintomas para buscar ajuda médica, foi difícil encontrar pacientes que se enquadrassem nos critérios do estudo. “Foi muito difícil captar os pacientes em fase inicial, e foi um estudo de extrema responsabilidade porque tínhamos receio de trazer algum prejuízo ao paciente em razão do tempo [de contágio]. Então tínhamos que triar um número enorme de possíveis candidatos”, relata.

A médica infectologista Joana D’arc participou da pesquisa na etapa de ensaio clínico. Foto: Divulgação

 

Questionada se havia algum receio por parte dos pacientes em colaborar com a pesquisa, tendo em vista que, em 2020, as informações sobre o novo coronavírus eram poucas e recentes, Joana D’arc relata: “Foi um processo muito interessante porque às vezes você ia interrogar um paciente, ele não aceitava e o paciente ao lado dizia ‘ei, eu quero participar!’. Só que havia todos os critérios de inclusão e a gente dizia ‘olha, você não pode’, [e eles respondiam] ‘ah, mas eu queria tanto participar!’. Era muito interessante porque tinha muita gente naquele desejo de encontrar alguma coisa que fosse resolver o problema”, lembra.

 

O médico hematologista e chefe da Divisão Técnica da Fundação Hemocentro de Brasília, Alexandre Nonino, coordenou a seleção e testagem dos potenciais doadores, a coleta, o armazenamento e a distribuição do plasma de convalescentes. Ele explica como o processo funcionava: “A testagem dos doadores era feita avaliando os requisitos tradicionais para doações de sangue, acrescidos do tempo de infecção, que deveria ser entre 15 e 30 dias após a resolução dos sintomas. Além disso, os doadores teriam que ter anticorpos contra a covid-19 detectáveis. O plasma era testado da forma rotineira, assim como testamos hemocomponentes para doação”.

 

Nonino concorda que foi desafiador identificar pacientes que se enquadrassem nos critérios da pesquisa: “A dificuldade de incluir pacientes existiu, mas não por baixa aceitação dos sujeitos de pesquisa, mas sim porque os critérios de inclusão previam que o paciente deveria ter até dez dias do início dos sintomas, e a maior parte dos pacientes que eram internados no Hran, transferidos de outras unidades de saúde, já chegavam com tempo superior a dez dias”.

 

Em razão dessas dificuldades identificadas ainda na etapa de ensaio clínico, André Nicola avalia que a aplicação prática do tratamento com plasma de convalescentes no cenário brasileiro é pequena. “Eu acho que para a nossa realidade aqui no Brasil não é [um resultado] muito pragmático. Tem pouca gente com covid-19 que vamos conseguir pegar nessa etapa tão inicial. Em países com outras realidades, o resultado pode ser mais aplicável”, analisa.

 

“O Reino Unido, por exemplo, distribui testes caseiros. Uma vez por semana cada pessoa pode pegar sete testes, então a princípio as pessoas podem se testar pelo menos uma vez por dia, aí é fácil você descobrir a doença no momento inicial”, exemplifica país onde o tratamento tem possibilidade de funcionar.

 

Na última sexta-feira (28), a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) liberou a venda de autotestes de covid-19 no Brasil. A medida, no entanto, não tem efeito imediato, pois as empresas interessadas em vender os produtos precisam obter o registro junto ao órgão. A previsão é de que em fevereiro sejam aprovados os primeiros testes do tipo para comercialização.

O plasma de convalescente utilizado no ensaio clínico foi coletado no Hemocentro de Brasília. Foto: André Nicola/FM UnB

 

PLASMA E ANTICORPOS MONOCLONAIS – Existem diferentes estratégias de enfrentamento às infecções, e a pandemia de covid-19 fez com que a comunidade científica se debruçasse sobre elas. O tratamento com o uso de plasma de convalescentes consiste no uso de anticorpos produzidos por um indivíduo que já esteve doente e se recuperou, para tratar a mesma doença em outra pessoa.

 

Anticorpos são proteínas produzidas pelo nosso sistema imunológico sempre que nos infectamos. “Essa foi uma das primeiras estratégias para tratar doenças infecciosas lá no século XIX, em 1880, 1890”, explica André Nicola.

 

O procedimento começa com a coleta de sangue da pessoa que já se curou da doença; em seguida, os anticorpos que estão na amostra são isolados e injetados no paciente doente.

 

Outra estratégia de tratamento utiliza os chamados anticorpos monoclonais. O procedimento consiste na retirada do DNA responsável por codificar o anticorpo que combate determinada doença. A partir daí, é possível reproduzi-lo em laboratório em grande quantidade.

 

“Essa estratégia já deu origem a alguns fármacos [de combate à covid-19] que estão no mercado. Não no Brasil, porque eles são muito caros – nos Estados Unidos custa 2.500 dólares uma dose”, esclarece Nicola. Este foi o tratamento adotado pelo ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump, quando contraiu a covid-19 em 2020.

 

Em dezembro de 2021, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) publicou um relatório de recomendação com as Diretrizes Brasileiras para Tratamento Medicamentoso Ambulatorial do Paciente com covid-19. O documento afirma que o tratamento com anticorpos monoclonais “possui custo elevado, havendo limitações quanto à disponibilidade e implementação, com o medicamento sendo autorizado apenas para o uso hospitalar, representando desafio logístico e aumentando barreiras de adesão e acesso”.

 

Além disso, sua eficácia está diretamente relacionada ao estágio da doença, apresentando resultados positivos somente no início da infecção.

 

COMPILE – O consórcio internacional de centros de pesquisa para o desenvolvimento deste estudo foi batizado de Compile (Continuous Monitoring of Pooled International Trials of Convalescent Plasma for Covid-19 Hospitalized Patients). Os países que integram a iniciativa são: Estados Unidos, Bélgica, Brasil, Índia, Holanda e Espanha.

 

“A característica mais importante desse estudo é de ter, em tempo real, juntado os dados de várias pesquisas de centros diferentes no mundo todo, de estudos randomizados e prospectivos, ou seja, fazendo uma meta análise em tempo real e conseguindo esses dados de uma forma muito mais rápida do que se consegue normalmente. Afinal, em uma situação de pandemia, ter velocidade nas respostas é muito importante. Então mostrou-se que, em situações de urgência epidemiológica mundial, esse desenho [de pesquisa] pode ser repetido”, avalia Alexandre Nonino.

 

A médica Joana D’arc destaca a relevância da colaboração entre centros de pesquisa e hospitais: “É extremamente importante esse tipo de parceria: a universidade com os hospitais. Aqui em Brasília essa integração entre ensino, pesquisa e serviços ainda é pouco explorada, e temos um campo enorme com diversos hospitais públicos e a Universidade. Que esse tipo de cooperação possa durar”.

 

“Foi uma experiência de aprendizado excelente. A UnB poder participar de uma iniciativa internacional dessas é uma coisa super fantástica. Foi uma oportunidade de desenvolver um trabalho importantíssimo”, conclui André Nicola.

 

O professor conta que, após a publicação dos resultados observados nos ensaios clínicos, a colaboração entre os centros de pesquisa que integram o Compile terá continuidade. “A gente tem previsão de continuar a colaboração, não fazendo tratamento de mais pacientes com plasma de convalescentes, mas analisando os dados que já temos. [Serão] análises mais aprofundadas buscando outros detalhes”, afirma o docente.

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