Com quase 3 mil km de extensão, atravessando cinco estados brasileiros e movimentando a economia de centenas de municípios, o rio São Francisco – ou o Velho Chico, como foi apelidado e assim está no imaginário e cancioneiro popular – não é sinônimo apenas de riqueza e pujança, mas de conflitos políticos, transtornos ambientais e dramas sociais que envolvem milhares de famílias. Uma das maiores obras de infraestrutura do país, a transposição desse imenso rio, além de toda sua rede de implicações, tem sido noticiada pela imprensa, desde que foi iniciada, em 2005. Para mostrar como a grande imprensa não repercute as reais dimensões social e ambiental dos conflitos, bem como os prejuízos decorrentes dessas obras, Christianne Evaristo de Araújo desenvolveu, em seu doutoramento, a tese “A partir das águas: argumentações midiatizadas, resistência popular e a transposição do rio São Francisco”.

Elaborada no Centro de Desenvolvimento Social, sob a orientação da professora Mônica Molina, a tese analisou reportagens veiculadas no jornal Folha de São Paulo entre 2005 e 2007, expondo como as forças sociais que conformam os movimentos de resistência popular foram, em geral, noticiadas de modo distorcido, já que ocultavam os principais atores e ações em defesa do meio ambiente e das populações atingidas por barragens e outros obras de impacto. “Contra a transposição convergiram diversas ações coletivas, como Movimento dos Atingidos por Barragens, Trabalhadores Rurais Sem Terra, entidades religiosas, etnias indígenas e comunidades quilombolas”, aponta Christianne.

 

GREVE DE FOME - “O impacto socioambiental gerado pela obra vem sendo silenciado pela grande mídia”, afirma a pesquisadora, que se mostra atenta aos dramas das comunidades impactadas por essas grandes obras de infraestrutura, desde o seu trabalho de mestrado, em 2006, na Universidade Federal do Ceará, no qual analisou o Movimento dos Atingidos por Barragens, a questão ambiental e a resistência popular organizada em torno da Barragem do Castanhão. “Após esse período, continuei acompanhando a militância e as mobilizações contra a transposição. Foi quando percebi que o único fato que realmente chamou atenção da imprensa foram as duas greves de fome de Dom Cappio, em 2005 e 2007”.

 

A partir de uma discussão teórica sobre análise de discurso, ideologia, mídia e movimentos sociais, compreendendo a mídia como uma instância de produção simbólica de sentidos, Christianne Evaristo investigou como os conteúdos veiculados pela Folha de São Paulo retrataram a rede de resistência popular contra as obras de transposição, ora não repercutindo devidamente a "verdadeira de dramática extensão do impacto em milhares de vidas" ora ridicularizando suas lideranças.

 

Com o objetivo de identificar os mecanismos ideológicos que orientaram a linha editorial do jornal, a pesquisadora se valeu de referentes textuais e imagéticos para constatar que a grande maioria das manchetes e chamadas de capa ocultaram as manifestações de protesto e o verdadeiro cenário de resistência contra o projeto do governo. No universo de 231 reportagens associadas analisadas, porém, 61,5% abordaram, no chamado “miolo do jornal”, as mobilizações sociais ocorridas.

 

VALOR-NOTÍCIA - Conforme Christianne percebeu, entra as ações relativas à resistência, as duas greves de fome empreendidas por Dom Cappio é que geraram fatos políticos com significativa repercussão midiática. “No caso da Folha de São Paulo, o reflexo desses protestos foi de tal ordem que, em 2005, 55,76% do total do material publicado sobre o tema ocorreu durante a efervescência midiática da primeira greve de fome do bispo”, acrescentando que a segunda greve, em 2007, motivou 60% das matérias publicadas abordando o assunto da transposição.

 

“O valor-notícia da greve se formou por causa do apelo atraente envolvendo um clérigo, além do próprio ineditismo, no caso da primeira greve”, disse. “O que o próprio bispo intentava com seu gesto solidário – ou seja, dar mais visibilidade às propostas populares e conferir mais organização aos movimentos envolvidos – foi entendido pela imprensa como uma atitude individual”, analisou.

 

"O mais importante revelado em minha tese diz respeito ao silenciamento proposital desse jornal de alcance nacional em torno das populações atingidas por esse grandes e milionários empreendimentos", concluiu Chistianne. "Se, desde o início, a imprensa tivesse dado voz aos atingidos a opinião pública se portaria de outro modo, e esses movimentos, que envolvem comunidades quilombolas, ribeirinhas, indígenas, sertanejas, teriam mais força política para decidir melhor seus destinos", finalizou.