Pesquisador analisa quatro décadas de folia e mostra como os carros de som criaram a mistura de ritmos em Salvador.

“Pombo correio/ Voa depressa/ E esta carta leva/ Para o meu amor”. Com esses versos, Moraes Moreira levou o vocalista para cima do trio elétrico no carnaval de 1975. Foi uma ousadia do baiano: a tecnologia da época não permitia voz nos carros que puxavam a festa. Moraes teve que enfrentar o zunido das caixas de som e uma bronca de Dodô e Osmar – os criadores do trio elétrico – que cederam espaço ao cantor.


Mas estava decidido. A partir daquele momento, as letras que antes eram cantadas pelos foliões nas ruas subiam definitivamente aos carros de som, que antes tocavam apenas músicas instrumentais. No ano seguinte, Moraes e os Novos Baianos usaram a arte do improviso para montar um trio elétrico livre da microfonia causada pelas vozes dos cantores. A invenção ficou conhecida como “Morcegão da Madrugada”, por causa das caixas de som pretas enfileiradas.


O historiador Rafael Sampaio, da Universidade de Brasília, seguiu a trilha das músicas que animaram gerações de foliões em cima do invento baiano. O pesquisador mostra na dissertação “Na Trajetória do Trio: a canção do carnaval baiano entre uma mirada mágica e os espaços da alegria” que as letras cantadas no trio elétrico promoveram um jeito mais democrático de pular o carnaval.

SEGREGAÇÃO - “Antes os blocos dos negros e da elite branca tinham espaços completamente separados para desfilar”, explica Rafael. “A festa da elite terminava nos salões, onde o negro não podia entrar”. Dodô e Osmar começaram a quebrar essa lógica em 1950. Gente de todas as classes sociais não resistiu e brincou atrás do Ford 1929 adaptado por eles. “Mas foi na década de 70 que a ideia se massificou, graças em grande parte às letras, que as pessoas podiam acompanhar e cantar junto”.


Mas o período analisado por Rafael, baiano e folião, começa em 1968, ano em que Caetano Veloso lançou Atrás do trio elétrico. “Ela foi a primeira letra composta especialmente para os trios e ainda era cantada apenas pelos foliões na rua”. A partir desse ponto ele conta a história das transformações do carnaval baiano, década a década, até 2010 usando como fontes históricas as próprias letras das músicas - abordagem aplicada no Grupo de Pesquisa História e Música (veja quadro no final da matéria).


Escute a música Atrás do trio elétrico


 “Nos primeiros anos, elas cantavam o jeito mais solto de pular o carnaval atrás dos trios”, conta Rafael. “A empolgação era tanta que as pessoas se perdiam umas das outras e se misturavam”. Um dos exemplos célebre, Chuva, Suor e Cerveja, também de Caetano, representa bem esse espírito: “Não se perca de mim/ Não se esqueça de mim/ Não desapareça/ A chuva tá caindo/ E quando a chuva começa/ Eu acabo de perder a cabeça”.


Escute a música Chuva, Suor e Cerveja


CONSCIÊNCIA NEGRA -
 O que marcou o carnaval na década de 80 foi a emergência dos blocos-afros, que trouxeram consciência política para suas músicas com letras que exaltavam o negro e suas tradições. “As letras vão abandonar o motivos meramente festivos para mostrar que não estamos bem, que no Brasil ainda tem discriminação”, diz Rafael. “Ao mesmo tempo, vão servir para reafirmar as nossas raízes africanas.”


A música dos novos blocos chocou a elite branca de Salvador. O Ilê Aiyê, em seu primeiro desfile ainda em 1975, cantava os versos: “Branco, se você soubesse o valor que o preto tem/ Tu tomavas banho de piche, branco e, ficava negrão também”. Rafael destaca que letra e melodia beberam da influência do candomblé e outras religiões de origem africana. “Começamos a ver a presença maior de palavras no idioma ioruba e de batidas derivadas dos terreiros”, conta o pesquisador. “Além de afirmarem sua cultura, eles o faziam em contraposição ao branco, chegando ao ponto de desprestigiá-lo”.

A batida dos blocos-afro incomodou, mas também seduziu irremediavelmente os foliões. Mais uma vez Moraes Moreira foi pioneiro ao trazer o ritmo para cima dos trios em 1979 com a músicaAssim pintou Moçambique, com letra de Antonio Risério. “Moraes promoveu um encontro importante trazendo essa batida para a guitarra elétrica”, afirma Rafael.


Relembre a música Assim pintou Moçambique


MISTURA -
 O ato inaugura um movimento que se propaga durante toda a década: ao mesmo tempo em que os antigos artistas do trio elétrico adotam as influências de grupos como o Ilê Aiyê, Olodum e Muzenza; os blocos afros, que antes brincavam apenas no chão firme, subiram ao trio. “Eles não podiam competir com o som elétrico apenas com a batida dos tambores”, conta Rafael.


A mistura dos ritmos veio a desaguar no Axé Music – que estourou na década de 90. “Aqui os artistas vão se apropriar da musicalidade dos blocos-afro, mas não do discurso de contestação”, relata. Essa é a década de Daniela Mercury, Banda Eva e Banda Beijo – todos cantando a alegria, o verão, a mistura do negro e do branco no carnaval baiano.

“Salve, Salvador/ Me bato, me quebro, tudo por amor/ Eu sou do Pelô/ O negro é raça, é fruto do amor”, celebra a letra de Prefixo de Verão, da Banda Mel. Aqui, porém, a segregação volta com tudo: as cordas que separam aqueles que podem pagar para “sair nos blocos” do resto da multidão. “As letras dizem que tudo dá certo, tudo se mistura, mas a desigualdade permanece”.


Relembre a música Prefixo de Verão


GLOBALIZAÇÃO –
 A viagem no tempo empreendida na pesquisa termina na primeira década do século XXI. “O trio desde que surgiu foi um lugar de mistura – dessa vez as músicas passaram a cantar o encontro do mundo inteiro e de todos os ritmos no carnaval”, pontua Rafael. Nomes como Cláudia Leite e Ivete Sangalo ganham o espaço dos trios. E é na voz de Ivete que a folia global ganha os foliões: “Hoje tem festa no gueto/ Pode vir, pode chegar/ Misturando o mundo inteiro/ Vamo vê no que é que dá.../ Tem gente de toda cor/ Tem raça de toda fé/ Guitarras de rock'n roll/ Batuque de candomblé/ Vai lá, prá ver...”

“O carnaval da Bahia se transforma em um espaço múltiplo: não só o axé, mas o forró, o brega, a música eletrônica ganham as ruas”, explica o pesquisador. “A diversidade acaba se refletindo nas letras”. Para Rafael, no conjunto da obra, o trio elétrico aparece como ator central em toda a trajetória. “É o lugar de inovação da música baiana e em algum sentido da música brasileira”, afirma. “O trio trouxe em todos esses momentos um sentido de mistura e a ideia de eletricidade e modernidade”.


Leia trecho da dissertação com análise da letra de Atrás do trio elétrico


MÚSICA E HISTÓRIA
O Grupo de Pesquisa História e Música tem como proposta usar a própria música como fonte. “Analisamos tanto as letras, como as entonações e performances dos artistas”, explica a professora Eleonora Zicari, coordenadora do grupo. A equipe atua desde 2007 e já desenvolveu estudos sobre a produção de Elis Regina, Os Mutantes e a Jovem Guarda.