Estudo da UnB revela pela primeira vez quantas e quem são as mulheres que interrompem a própria gravidez no Brasil. Elas somam cerca de 5 milhões, sendo que a maioria é casada, tem filhos e religião.

Ela não tinha rosto, não tinha casa, não tinha crenças nem lugar na sociedade. A mulher que aborta no Brasil era uma sombra. Não se sabia quem era, onde estava e o que pensava. Desconhecida, e tratada pela lei como criminosa, era apontada quase sempre como uma mulher sem sentimentos por rejeitar a maternidade.


Pesquisa da Universidade de Brasília, em parceria com o Instituto de Bioética e financiada pelo Fundo Nacional de Saúde, revelou a face da brasileira que interrompe a gravidez. Ela é casada, tem filhos, religião e pertence a todas as classes sociais. O estudo também conferiu precisão ao que eram apenas estimativas. As mulheres que abortam são muitas.


Das 2.002 entrevistadas no estudo, de 18 a 39 anos, 15% declararam que já fizeram pelo menos um aborto. Projetado sobre a população feminina do país nessa faixa etária, que é de 35,6 milhões, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), esse número representaria 5,3 milhões de mulheres. Até então, as estatísticas disponíveis sobre aborto no Brasil eram as relacionadas a curetagens feitas nos hospitais, uma média de 220 mil nos últimos sete anos.


Colocados os números e conhecidas as mulheres, a questão é o que fazer com elas. O Código Penal prevê pena de detenção de um a três anos para a gestante que provoca o aborto. E reclusão de um a quatro anos para quem faz o aborto com o consentimento da mulher grávida. A prática só não é crime quando representa risco de vida à gestante e quando decorre de estupro. “O Estado vai mesmo colocar 5 milhões de mulheres na cadeia?”, indaga o professor Marcelo Medeiros, do Departamento de Sociologia da UnB e um dos autores da pesquisa.


As opiniões são divergentes. O Ministério da Saúde e a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República defendem que o aborto deve ser tratado como um caso de saúde pública. O principal argumento é o de que milhares de mulheres morreram em consequência da prática e outros milhares procuram os hospitais com complicações. A própria pesquisa mostrou que 55% das mulheres que abortaram ficaram internadas.


A coordenadora da Área de Saúde e Poder da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, Elizabeth Saar, defende a descriminalização como único caminho. “O assunto tem de sair das páginas policiais e ir para as páginas sociais e de saúde. O Brasil tem de assumir o compromisso de revisar a lei”, defende.


BOLSA-ESTUPRO -
Os projetos de lei que tratam do assunto, entretanto, são dos mais polêmicos do Congresso Nacional e, por isso mesmo, não saem do lugar. O mais recente é o PL 478/2007, o Estatuto do Nascituro. A proposição garante proteção jurídica aos embriões e propõe que as mulheres que engravidaram em consequência de estupro recebam um benefício em dinheiro, daí a razão para projeto ter ficado conhecido como bolsa-estupro. “O projeto discrimina a mulher e representa um retrocesso”, afirma a professora da UnB, Débora Diniz, coordenadora da pesquisa.


Durante a discussão da proposição na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados, parlamentares quiseram retirar da lei as situações em que o aborto é permitido, mas a tentativa fracassou. “O número alto de abortos não significa que ele deve ser descriminalizado. Mais de 50 mil pessoas por ano morrem vítimas de violência. Vamos legalizar o assassinato porque muitas pessoas matam”, questiona um dos autores do projeto, o deputado José Miguel Martini (PHS-MG).


Ele defende que as mulheres que optam pelo aborto por falta de informação sejam apoiadas pelo Estado, mas aquelas que, mesmo informadas, o praticam, devem ser punidas. “Uma mulher informada hoje só engravida se quiser. Ela tem de assumir a responsabilidade dos seus atos”, afirma. “Ao mesmo tempo, é papel do Estado oferecer apoio às mulheres que optam por essa alternativa por falta de informação”, acredita. O apoio, na opinião dele, é a oferta de condições para que a mulher evite uma gravidez indesejada e, uma vez grávida, possa fazer um pré-natal, manter seu filho em segurança e até receber assistência psicológica, caso seja necessário.


A prevenção é a política adotada pelo Ministério da Saúde. “A pesquisa mostra que estamos no caminho certo ao ampliar a oferta de métodos contraceptivos no sistema único de saúde”, afirma o assessor especial do ministério, Adson França.


ANENCÉFALOS -
Se no Legislativo o debate não avança, o assunto ganha espaço no Judiciário. O Supremo Tribunal Federal prometeu julgar a permissão do aborto no caso de fetos anencéfalos até o final do ano. Apesar de não virar lei, a decisão cria jurisprudência sobre o assunto. Ou seja, gera uma orientação para processos sobre o tema em todas as instâncias do judiciário. "A via mais fácil ainda é a judiciária. Se a decisão do Supremo for favorável ao aborto de anencéfalos, ainda que a mulher precise recorrer à justiça, a liminar sairia entre 24 horas e 15 dias após o pedido", explica a advogada Margarida Pressburguer, da seção do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil.


O assessor da Comissão para Vida e Família da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Padre Bento, acredita que os dados servem para mostrar a realidade e fomentar um debate mais esclarecido sobre o aborto. Dentre as mulheres ouvidas na pesquisa, 80% tem religião. “Esses dados levam a nós, religiosos, a encontrar novos métodos, novas estratégias e novo ardor para tratar o tema. Mostra que alguma coisa não está bem. A nossa mensagem não está chegando aos corações do homem e da mulher moderna”, explica.


Ele enfatiza que a Igreja não é contra o aborto e sim a favor da vida. “A vida é um dom, não é minha. Como posso dizer que a vida da mãe é mais importante que a de seu filho? Não cabe a nós decidir”, explica. Segundo ele, a ideia da CNBB é intensificar as campanhas de valorização da vida nas escolas e insistir na “educação para o amor”. Ele conta que em suas campanhas trabalha a mensagem de que o casal, na relação sexual, deve estar sempre aberto, preparado, para a possibilidade de ter filhos.


MULHER COMUM –
Dentre o total de mulheres que declararam na pesquisa já terem feito pelo menos um aborto, 64% são casadas e 81% são mães. “A mulher que aborta é uma de nós. Ela é a sua irmã, ela é a sua vizinha, ela é a sua filha ou a sua mãe”, define Débora Diniz. A classe social não interfere na decisão. Do total de mulheres que abortaram, 23% ganham até um salário mínimo, 31% de um a dois, 35% de dois a cinco e 11% recebem mais de cinco. “Pobres e ricas, todas abortam”, afirma a professora.


O levantamento é o maior sobre o assunto no Brasil. Antes, os dados que se dispunham eram imprecisos e coletados somente quando as mulheres tinham alguma complicação e procuravam os hospitais públicos. A elaboração da pesquisa foi antecedida de um amplo levantamento de toda a bibliografia científica sobre o aborto. Depois, foram elaborados os questionários, testados previamente por estudantes da UnB e revisados por quase 20 especialistas de toda a América Latina. “O trabalho envolveu toda a universidade e muitos dos grandes estudiosos do assunto”, explica Marcelo Menezes.


As entrevistas definitivas foram feitas pela Agência Ibope Inteligência, para garantir a imparcialidade do estudo. O método foi responder as perguntas de próprio punho e depositar em uma urna. “Só conseguimos porque garantimos a elas o sigilo”, resume Marcelo. A pesquisa já foi publicada na Revista Ciência & Saúde Coletiva, editada pela Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva/Abrasco.



Ilustração: Marcelo/UnB Agência