Pesquisas da UnB analisam caso de contaminação que mudou a vida de quatro famílias de Sobradinho.

Imagine acordar um dia e perceber que toda a água que usa para beber, cozinhar e tomar banho está com cheiro de gasolina. Pior: ver a família adoecer enquanto os responsáveis pela contaminação se negam a responder pelos danos causados. Foi o que aconteceu com Edison Luís Guedes, quando morou em uma chácara no Condomínio Vila Rica, em Sobradinho. Quase dez anos depois da tragédia que obrigou quatro famílias  a abandonar o conforto que haviam conquistado na área rural, pesquisadores da UnB conduziram estudos para entender melhor como ocorreu o problema.


O engenheiro civil Bruno Esteves reconstituiu o caminho do combustível no solo antes de alcançar o poço artesiano que abastecia as casas.  Por meio de uma simulação de computador, o pesquisador descobriu que o vazamento havia se dado em fevereiro de 2001, 16 meses antes de ser detectado. Em dissertação defendida na Universidade de Brasília, ele mostrou que a substância contaminante foi o benzeno, presente na gasolina, que atingiu o limite máximo de concentração quatro meses antes de ser descoberto.


Posto de gasolina - Edison lembra que a propriedade foi comprada por José Mauro Fagundes em 1985. Um posto de gasolina instalou-se ao lado, em 1992.  Ele se mudou com os pais para o local . “Eram algumas famílias de amigos que buscavam uma maior qualidade de vida”, conta. Quando desconfiaram do vazamento, ele já estava casado e sua mulher estava grávida: “Na época começamos a sentir um cheiro forte na água, principalmente na hora do banho”.


Os moradores pensaram que a origem era o descarte de óleo que o posto fazia regularmente. “O óleo que eles jogavam fora escorria até perto do nosso terreno. Reclamamos dessa situação algumas vezes.” As famílias se reuniram e mandaram analisar a água. Uma romaria de técnicos do GDF e da Petrobrás passou a frequentar o condomínio. “Alguns deles chegaram a nos dizer que fomos nós que contaminamos a água, teve outro que só cheirou e já falou que estava boa para o consumo”, lembra Edison.


Eram todas famílias de classe média, num total de 22 pessoas. O limite considerado tolerável é até 5 microgramas de benzeno por litro de água. No local, o total de benzeno chegou a 12,3 microgramas por litro, em junho de 2002, quando foi comprovada a contaminação, o que equivale a 2,5 vezes mais que o limite. Nesse momento, os moradores do condomínio pararam de beber a água. Em outubro, quando decidiram fazer as malas, o índice já alcançava 2.054,15 microgramas por litro, 410 vezes mais. “Conseguimos determinar a data exata em que o vazamento ocorreu”, afirmou o pesquisador.


Na chácara 6, km 22 da BR 020, a mãe de Edison, Ana Beatriz Guedes Neves, foi uma das pessoas que mais sofreu com os efeitos da contaminação: dores de cabeça, dores no corpo, estado de prostração. Alguns desenvolveram problemas de tireóide. “Meu filho nasceu com uma deficiência na dentição que a gente acredita ter alguma relação com o benzeno”, diz Edison. “A situação só não foi pior porque conseguimos nos mobilizar a tempo”.


SIMULAÇÃO -
 Tendo como orientador da pesquisa o professor Sérgio Kóide, da Engenharia Civil, Bruno Esteves partiu de informações coletadas na época do acidente e conseguiu determinar o formato e o tamanho da região contaminada pelo combustível . “Apesar de já apontarem com segurança níveis de benzeno acima do limite exigido, os dados da época não eram confiáveis por causa da grande variação de laboratórios. Resgatamos então a forma geométrica exata ocupada pelo combustível no solo, que tem um formato de pluma”, conta o pesquisador.


Para isso ele usou um programa desenvolvido nos EUA: o Visual Mod Flow. “Precisamos apenas adaptá-lo para a realidade brasileira, já que nosso clima e nosso solo são diferentes”. Outras mudanças precisaram ser feitas por causa da composição diferente do combustível brasileiro. “Aqui misturamos gasolina com álcool, que favorece a dissolução do benzeno na água”. Bruno construiu um modelo conceitual no computador que reproduziu as condições hidrológicas e geológicas, condição básica para saber como os líquidos fluem pelo terreno.


A partir da simulação foi possível determinar a evolução da concentração de benzeno em um dos poços usado pelas famílias. “O programa foi capaz de calcular esse valor usando os dados que tivemos sobre o tamanho da pluma e sobre o solo no local”, afirma Bruno. O que causou a contaminação por benzeno foi o vazamento nos tanques de combustível. “O vazamento expôs as famílias a quantidades baixas de benzeno, mas por um período prolongado”, explica.


Segundo o pesquisador houve dois momentos importantes no nível de exposição das pessoas. “O primeiro foi quando o consumo de água por ingestão foi interrompido, em junho de 2002. Nesse ponto a concentração de benzeno já era 2,5 vezes maior que o máximo permitido pelo Ministério da Saúde, 5 microgramas por litro.” O segundo foi quando a população foi removida, em outubro do mesmo ano. Aí encerrou-se a exposição por outras vias – respiratória e pela pele.


PRECISÃO -
 Outro estudo realizado pela bióloga Miriam dos Anjos demonstrou, por meio de metodologia recomendada pelo Ministério da Saúde, qual o risco que as famílias estiveram submetidas. Miriam usou os dados da pesquisa de Bruno para determinar o risco à saúde dos envolvidos. “Com a simulação de Bruno pudemos saber com exatidão o tempo de exposição das pessoas às substâncias”.


Para realizar a avaliação, a pesquisadora partiu do dados hidrológicos e geológicos do local do acidente e selecionou um das substâncias presentes no vazamento como foco. “Estudamos especificamente os efeitos do benzeno por que foi a substância encontrada em maior quantidade no local”, explica Miriam. “Em seguida relacionamos as principais formas de contaminação pela substância: por ingestão em água ou alimentos, pela pele, pelo ar”, conta. Ela também dividiu os dados sobre a exposição ao contaminante de acordo com idade e sexo. “O efeito no organismo varia principalmente com o peso da pessoa”, observou Miriam, informando que o contato com a pele no banho e em atividades domésticas foram os principais fatores de risco.


“O próximo passo foi mensurar qual foi a exposição das pessoas ao veneno e como interferiu no risco à saúde das pessoas”, conta a pesquisadora. Os dados da pesquisa confirmaram que as mulheres e a única criança com menos de um ano sofreram muito mais com o acidente. A exposição diária chegou a 23 microgramas por quilo de massa corporal para o primeiro grupo e 22 para o segundo. “Isso significa um risco muito maior de desenvolver câncer, por exemplo, do que a população em geral”, explica Miriam. Com a exposição intensa, as chances de cada um deles sofrer câncer é de 22 para 100 mil, enquanto que para o restante da população é de apenas 1 em 100 mil.


Edison conta que as famílias não chegaram a colocar a empresa na justiça. “Em vez disso chegamos a um acordo por uma indenização no valor de 120 mil reais para cada pessoa.” O acordo só foi alcançado dois anos depois do acidente, em 2004. A Petrobrás comprou o terreno pelo preço que tinha antes da contaminação e banca exames periódicos, de três em três meses, para todos os moradores.


ESTUDO DE CASO -
 Para o pesquisador Bruno Esteves, o sistema pode ser utilizado para auxiliar na tomada de decisão de empresas e servir para encontrar a melhor maneira de agir em casos de contaminação. “È possível saber, por exemplo, qual é o melhor momento de remover a população”, explica. Bruno acredita que o estudo pode ainda ajudar no planejamento de estruturas que irão de alguma forma afetar o subsolo, como postos de gasolina ou usinas, por exemplo: “È possível simular antecipadamente uma ação como a realização de um bombeamento.”


O orientador da pesquisa, Sérgio Kóide confirma que as descobertas poderão ter ampla utilização no setor privado. “Além disso, é uma ferramenta para o planejamento, podendo prever onde e como a água do solo pode ser empregada em um empreendimento e como ele vai afetar os aquíferos da região”, destaca o professor. Igualmente, pode ajudar a melhorar os níveis de isolamento de tanques de combustível.


ENTENDA O CASO


Fevereiro de 2002 
Peritos da polícia civil constam lançamento contínuo de efluentes no solo por um posto de gasolina da BR Distribuidora, próximo ao condomínio Vila Rica, em Sobradinho. O posto atuava sem Sistema Separador de Óleo – derivados de petróleo, oriundos da própria atividade do posto. Abastecimento, lavagem, troca de óleo e lubrificação são lançados diretamente no solo, por meio de uma calha. Ibama e Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Semarh) autuam o estabelecimento.


Maio de 2002 
A BR Distribuidora responde ao auto de infração do Ibama informando já ter tomado medidas cabíveis a respeito. Os moradores começam a sentir um cheiro estranho na água que utilizavam, proveniente de poços artesianos. Exames constatam a contaminação por benzeno em seis pessoas.


Junho de 2002 
Em junho de 2002, a empresa ENSR Internacional de Brasília Limitada é contratada pela Petrobrás Distribuidora para avaliar os danos ambientais no local. A investigação revela a presença de gasolina nos poços da chácara. Amostras de água e do solo são enviadas para análise laboratorial na Alemanha. As análises indicam a presença de Benzeno, Tolueno, Etil-Benzeno, Xileno, Naftaleno, Fenantreno e Pireno.


Agosto de 2002 
A Semarh solicita a um laboratório da UnB análise de água e solo semelhante à feita pela ENSR. Embora tenha sido constatada a divergência entre os valores encontrados pelos dois laboratórios, ambos os laudos comprovam a contaminação em grande escala dos recursos hídricos subterrâneos.


2003 
Ministério Público Federal entra com Ação Civil Pública exigindo que a Petrobrás Distribuidora e o Posto investiguem e monitorem a área afetada pelo vazamento, por um período mínimo de cinco anos. O processo pede também indenização pelos danos causados, em valor a ser estipulado pelo Juiz, a ser revertido para projetos de recuperação ambiental no DF. Até hoje a ação tramita na Justiça Federal e já foi extinta uma vez em decisão de 2007. O Ministério Público recorreu da decisão.


2004
Os moradores fazem acordo com a BR Distribuidora. O acordo inclui o pagamento de indenização de 120 mil reais, a realização de exames a cada três em três meses.