Presidente de encontro nacional sobre Bioética, que começa 7 de setembro, o professor Volnei Garrafa defende em, entrevista ao UnBCiência, a criação de conselho nacional na área para discutir a moralidade das pesquisas. Projeto está no Congresso Nacional há seis anos.

Uma das maiores autoridades do país em Bioética, o professor Volnei Garrafa trará à Brasília, na próxima semana, 25 pesquisadores internacionais e 50 brasileiros para o maior congresso sobre o tema realizado na última década. É o IX Congresso Brasileiro de Bioética, que ele preside.


Com 134 pôsteres apresentando resultados de pesquisas, 164 comunicações orais e 800 participantes já inscritos, o encontro vai discutir questões relacionadas à vida humana, animal, ambiental e planetária. Do total de estudos que serão apresentados entre os dias 7 e 10 de setembro, 10% são da Universidade de Brasília. O encontro é organizado pela Sociedade Brasileira de Bioética.


Professor titular do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências da Saúde, Volnei Garrafa antecipou em entrevista ao UnBCiência as principais discussões que vão marcar o encontro. O congresso discutirá temas como uso de pessoas e animais em pesquisas, saúde pública, terminalidade da vida, testes para produção de medicamentos, religião e meio ambiente, a partir de uma visão mais politizada.


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Na entrevista, Volnei também revela como a pesquisa é regulamentada no Brasil e defende a criação de um Conselho Nacional de Bioética. Encaminhado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o projeto está parado no Congresso Nacional há seis anos. “O Legislativo caminha muito mais lentamente que o progresso da nossa ciência”, disse.


UnBCiência
: Qual a proposta do IX Congresso Brasileiro de Bioética?


Volnei Garrafa
: Abrir o fórum para a sociedade e ajudar o Brasil avançar em discussões fundamentais relacionadas à vida humana, animal, ambiental e planetária. Temas como o aborto, por exemplo, têm milhares de anos e até hoje não temos uma posição única. A sociedade vem amadurecendo, mas a ciência e a tecnologia andam muito mais rápido, apresentam todos os dias uma novidade. A tecnologia “roubou” da sociedade o tempo para amadurecer conflitos. Precisamos de respostas mais rápidas e concretas para temas controversos. Para isso, é necessário o debate amplo com a sociedade.


UnBCiência
: Como a Bioética deixou de abordar temas exclusivamente das áreas médicas e biológicas e se ampliou para assuntos sociais e ambientais?


Volnei
: A Bioética trata da ética relacionada com todas as situações de vida humana, animal, ambiental, planetária. A palavra surgiu nos anos 70 e se internacionalizou com uma visão excessivamente biomédica e biológica, ou seja, muito relacionada com a relação entre profissionais de saúde e pacientes e entre pesquisadores e sujeitos de pesquisa. Nos anos 90, começamos, no mundo científico, a trabalhar a ampliação dessa base conceitual para além da esfera biomédica, com a inclusão de três campos: sanitário, que engloba o acesso à saúde, por exemplo; social, onde entram temas como exclusão social, analfabetismo, quaisquer tipos de discriminação, só para citar alguns; e ambiental, onde está incluído o direito à água e ao oxigênio puro, por exemplo. Os países da América Latina, principalmente o Brasil, tiveram papel importantíssimo na ampliação dessa base conceitual.


UnBCiência
: Que fatores motivaram essa ampliação?


Volnei: Foi o maior congresso feito no mundo sobre Bioética, em 2002, e que envolveu 62 países, que politizou essa agenda. O ponto forte da reflexão foi o reconhecimento de que conhecimento não está gerando justiça. Atualmente, dois terços da população de todo o mundo não têm acesso aos benefícios das pesquisas. A Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) já tinha redigido, em 1996, a declaração universal do genoma humano. Essa declaração afirmava que o genoma humano não é de propriedade de empresas. Em 2003, a Unesco homologou declaração internacional dos dados genéticos humanos e ainda decidiu fazer uma terceira, de Bióetica, esta homologada em 2005 por 191 países. O Brasil teve papel fundamental neste processo. O país liderou os países da América Latina, África, sul da Ásia e árabes na defesa da ampliação dessa agenda.


UnBCiência
: Mas os países desenvolvidos reagiram a essa discussão de 2002. Qual foi o argumento?


Volnei: Os países ricos, principalmente os Estados Unidos, não queriam assinar a declaração, porque a Bioética referencia a ética nas pesquisas, está atenta à relação do patrocinador com sujeitos de pesquisa, por exemplo. Como quem movimenta esses países são, primeiro, as armas, depois as drogas, e, em seguida, os grandes laboratórios de medicamentos – o Brasil é o quarto consumidor mundial de medicamentos – queriam restringir a agenda para o campo biomédico. Mas nós dissemos não. Dissemos: queremos defender o pluralismo ético, que vai na mesma mão do pluralismo histórico, que é o respeito às raízes. A retirada do clitoris das meninas do norte da África, por exemplo, é questão cultural, mas nós não podemos deixar de discutir. O eixo epistemológico conceitual é esse.


UnBCiência
: Como estavam as discussões dentro da UnB nesse período?

Volnei: Todos os programas de pós-graduação da UnB, com temas ligados ou de interesse da Bioética, já trabalhavam nesse sentido. Em 2008, criamos um programa específico em Bioética e o pano de fundo já era esse da declaração de 2005. A grande área de concentração do programa vai de medicamentos de última geração até infanticídio, guerras biológicas.


UnBCiência
: E no Brasil, como estão as discussões que envolvem a Bioética?

Volnei: Na Holanda, cada cidadão decide em vida o que deve ser fazer com ele caso perca a capacidade de decidir. É o testamento vital, e já existe em países europeus, como Espanha, Áustria e Bélgica, embora com modelos menos avançados que o holandês. Claro que isso não é simples, tem de passar por comissões médicas. A pergunta é: o Brasil está preparado para isso? Moralmente já estamos nesse ponto?


UnBCiência
: Você acha que estamos?

Volnei: Avançamos muito aqui em termos acadêmicos, mas pouco dentro do contexto público. Para a imprensa, ainda não caiu a ficha. ONew York Times, por exemplo, elegeu em reportagem os temas mais importantes no século XXI, e a Bioética estava lá.


UnBCiência
: Como a ética nas pesquisas é tratada hoje nos países em desenvolvimento?

Volnei: Todos os países da comunidade européia, aproximadamente 42, já têm comissões nacionais de Bioética. A primeira foi criada na França em 1982 e discutiu por sete anos o tema da reprodução assistida. Quando o presidente enviou o projeto ao Parlamento, a discussão já estava amadurecida pela sociedade. É um comitê consultivo do presidente da República, com membros indicados pelo próprio presidente e obrigatoriamente pluralista. Tem de ter ateus, religiosos, advogados, representantes de movimentos negros e uma série de outros.


UnBCiência
: Então não é um comitê técnico?

Volnei: Não. Ele discute a moralidade desde pesquisas com seres humanos até temas como o aborto, a eutanásia e outros. É claro que é embasado por pareceres técnicos, mas vai adotar postura moral. Na Franca, quando discutiram a reprodução assistida, fizeram um debate amplo em todo o país, promoveram uma série de audiências públicas. Isso promove grande amadurecimento moral, ajuda a aprimorar discussões morais.


UnBCiência
: Por que não temos um comitê assim?

Volnei
: O presidente Lula encaminhou, em 2005, projeto para criação de um comitê baseado no modelo francês, de número 6.032/2005, e que está parado desde então. O projeto é resultado de uma ampla discussão organizada pelo Ministério da Saúde, com seis audiências públicas e vários setores da sociedade civil representados.

UnBCiência: O que ele propõe?

Volnei: A instituição de uma comissão ligada ao presidente da República e com 21 membros – seis da sociedade civil, três cientistas da área de ciências biomédicas e da saúde, três das ciências sociais e humanas, três das ciências da terra e da natureza, três de notório saber em Bioética, além de três indicações pessoas do presidente. Esse conselho permite ao Executivo encaminhar projetos de lei mais avançados e com uma vantagem: quando o tema é espinhoso, o presidente não se desgasta, porque foi proposto pelo conselho.


UnBCiência
: Por que a dificuldade em aprovar? Não estamos amadurecidos para isso?

Volnei: O Brasil está com desenvolvimento científico e tecnológico aceleradíssimo, e o Legislativo está caminhando muito mais lentamente que o progresso da nossa ciência. O Congresso Nacional atrapalha a ciência brasileira.


UnBCiência
: Como são reguladas hoje as pesquisas brasileiras?

Volnei: O país tem duas comissões técnicas de ética em pesquisas com seres humanos e mais de 600 comitês de ética e pesquisa que funcionam dentro de universidades, hospitais e outras instituições – a UnB tem três, um na Faculdade de Ciências da Saúde, que é o mais antigo, outro na Faculdade de Medicina, e o terceiro nas Ciências Sociais. Todos obedecem a Resolução 196/1996 do Conselho Nacional de Saúde. Mais recentemente, em 2005, foi criado o CTNbio(Comissão Técnica Nacional de Biossegurança), que trata de organismos geneticamente modificados. Daí o surgimento de um quarto comitê na UnB, no Instituto de Ciências Biológicas. Toda pesquisa que envolva seres humanos tem de passar, obrigatoriamente, pelo comitê ao qual está ligada. Mas são discussões técnicas. São avaliações como, por exemplo, se determinada pesquisa que usou 400 ratinhos precisava mesmo utilizar aquele número. Falta a cabeça nesse sistema: o conselho nacional, que fará análise moral.


UnBCiência
: Como os especialistas em Bioética se posicionam sobre as pesquisas com animais em laboratórios?

Volnei: Com moderação. É preciso meio termo. As pesquisas são necessárias, mas o respeito aos animais é fundamental. Cabe aos comitês buscar o equilíbrio. Ainda acontecem muitos excessos. Há muitos testes, por exemplo, em que o animal precisa ser sacrificado. Antigamente, o animal era jogado no lixo. Hoje, a morte tem de ser controlada. No Brasil começa a ter um controle maior. Recentemente, aprovamos lei sobre testes em animais.