Movidos pelo amor a seu povo, sua língua e cultura, eles se deslocam de suas aldeias para se dedicarem à vida acadêmica

Foto: Luis Gustavo Prado/Secom UnB

 

Eles representam diversos povos. Mas compartilham algo em comum além da identidade indígena: integram a nova geração de mestres e doutores linguistas do país. Pesquisar, documentar e contribuir para o fortalecimento de línguas e culturas aborígenes é o propósito que os traz à acadêmia. E o ponto de encontro dessas histórias é o Laboratório de Línguas e Literaturas Indígenas (LALLI) do Instituto de Letras da Universidade de Brasília.

 

Uraan Anderson Surui faz parte do povo Paiter Surui, que vive na terra indígena Sete de Setembro, localizada no estado de Rondônia. Graduado em Licenciatura em Educação Básica Intercultural pela Universidade Federal de Rondônia, atualmente coordenador da Organização de Professores Indígenas de Rondônia (Opiron), Surui agora dedica-se ao mestrado em Línguas Indígenas pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística (PPGL) do Instituto de Letras da UnB.

 

"O principal objetivo da minha pesquisa é fortalecer a língua Paiter, com a documentação, a organização de materiais para escolas da comunidade e uma concepção mais política, para que a língua permaneça para as futuras gerações", detalha Uraan sobre sua atuação no mestrado, que envolve a elaboração de um dicionário da língua Surui-Paiter. 

 

O estudioso ressalta a importância do protagonismo indígena na produção do saber. "Existem aspectos da nossa cultura que são impossíveis de expressar sem nossa língua materna, porque é um olhar que não se encontra em outra cultura. Por isso, tem que haver pesquisadores indígenas que tragam esse olhar para a academia. É um olhar que um pesquisador não indígena jamais teria."

Uraan trabalha no projeto de criação do dicionário da língua Surui-Paiter. Foto: Luis Gustavo Prado/Secom UnB

 

PRODUÇÃO ACADÊMICA – Entre os projetos em execução no LALLI está o Atlas Sonoro das Línguas Indígenas do Brasil (ASLIB). A ferramenta estará disponível online e fornecerá um banco de palavras em diferentes línguas indígenas. Além de escutar o termo, o internauta poderá visualizar sua escrita fonética e suas variações ao longo do território. O ASLIB é uma proposta geossociolinguística, ou seja, visa cartografar as variações geográficas e sociais das línguas indígenas do país. O projeto tem apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

 

A relevância do Atlas Sonoro é explicada pela doutora em Linguística e coordenadora do LALLI, professora Ana Suelly Arruda Câmara Cabral. "De acordo com pesquisas do professor Aryon Dall´Igna Rodrigues, na época do descobrimento eram faladas aproximadamente 1.200 línguas indígenas no Brasil. Hoje, cerca de 200 sobrevivem e apenas 180 dessas são faladas como primeira língua. É uma perda imensa e a cada dia essas línguas estão mais fracas por causa do contato cultural e do uso do Português. Há um deslocamento enorme da língua desses povos e, com isso, da cultura", avalia Ana Suelly.

 

O Atlas foi inspirado em dois outros projetos cujos pesquisadores são parceiros do Laboratório: o Sound Comparisons, idealizado por Paul Heggarty, do Max Planck Institutes, e o Atlas Linguístico Sonoro do Pará (ALISPA), coordenado pelo doutor em Linguística Abdelhak Razky, professor da Universidade Federal do Pará. A proposta inicial é disponibilizar cerca de 200 palavras do maior número de línguas indígenas que os participantes conseguirem documentar. Esse material está sendo produzido por alunos da pós-graduação em Línguas Indígenas e por pesquisadores de diferentes regiões do país associados ao LALLI. A previsão é de que nos próximos meses o Atlas esteja disponível na internet, em endereço eletrônico a ser divulgado. 

 

Ariel Pheula do Couto e Silva, doutorando em Linguística pelo PPGL, apesar de não ser indígena é amante das línguas desses povos. Desde a graduação estuda a temática. Agora, no doutorado, por duas vezes esteve na Alemanha, onde recebeu treinamento no Max Planck Institutes  sobre metodologias e técnicas de uso da plataforma do Atlas. Com a capacitação, Ariel se tornou articulador entre os demais colaboradores da iniciativa, repassando o conhecimento adquirido. "A partir do momento que os indígenas se apropriam do processo de produção do Atlas Sonoro, é mais provável que venham a usá-lo nas suas comunidades. Esse será um recurso importante nas salas de aulas indígenas. Além disso, não só professores, mas qualquer interessado poderá conhecer a diversidade linguística do nosso país", afirma o doutorando. Ariel explica ainda que o ASLIB é um projeto de longo prazo, já que o banco de palavras será ampliado continuamente.

 

Armando Xerente, mestrando no PPGL, dedica-se à produção do dicionário Xerente-Português. Foto: Júlio Minasi/Secom UnB
Armando Xerente, mestrando no PPGL, dedica-se à produção do dicionário Xerente-Português. Foto: Júlio Minasi/Secom UnB

 

SAUDADES DA ALDEIA – Há mais de 900 km da UnB está a aldeia Salto Kripré, na Terra Indígena Xerente, em Tocantins. Ali vive a comunidade de Armando Sópre Xerente, composta por cerca de 500 pessoas. "Deixar minha família para estar aqui é algo muito difícil. Dói. Mas estamos aqui para vencer, porque meu povo não é de desistir, mas de avançar”, confidencia o indígena, mestrando no PPGL da UnB, graduado em Licenciatura Intercultural pela Universidade Federal de Goiás.

 

Armando Xerente conta que até 1958 seu povo conhecia a língua apenas na modalidade oral, mas que após o letramento passaram a compreender a importância de registrar o idioma. Apoiado por sua comunidade, o índio se dedica ao projeto acadêmico de elaborar um dicionário bilíngue Xerente-Português. “Esse será um material didático para ajudar o aprendizado nas escolas indígenas. Vai facilitar também para aqueles que se interessam pela nossa língua", afirma.

 

Dentro ou fora da aldeia, Armando é movido pelo amor à sua comunidade. "Minha expectativa após concluir o mestrado é dar retorno para o meu povo. Quando a gente sai para caçar, a caça é distribuída para todos. O conhecimento tem que ser assim também, compartilhado com crianças, homens e mulheres", conclui o indígena.

 

LALLI – O Laboratório de Línguas e Literaturas Indígenas foi criado em 1999 pelo linguista Aryon Dall'Igna Rodrigues, que veio para a UnB a convite de Darcy Ribeiro. Desde então, o Laboratório tem apoiado pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Linguística (PPGL), com ênfase na linha de pesquisa Teoria e Análise Linguística de Línguas Indígenas

 

Nessa trajetória, foram diplomados 21 doutores – quatro deles indígenas – e 33 mestres, sendo nove indígenas. Atualmente, há seis mestrandos em formação pelo PPGL, dos quais cinco são indígenas. Há também quatro doutorandos não indígenas. Os projetos relacionados ao Laboratório tem contribuído para ampla produção científica, inclusive com a publicação de dois livros por ano, em média, e dois números da Revista Brasileira de Linguística Aplicada (RBLA). O LALLI atua em parceria com docentes e discentes do Mestrado Profissional em Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais do Centro de Desenvolvimento Sustentável (CDS) da UnB.

 

"O LALLI é um espaço que apoia a formação dos indígenas de forma diferente. Aqui os indígenas são protagonistas, não apenas informantes. Estão se apropriando desses conhecimentos para conseguirem discutir em condições de igualdade com outros linguistas. É um espaço também para estudar e encontrar outras pessoas que nos apoiam. Por isso, sentimos segurança em sair da nossa terra e vir estudar aqui", garante Edineia Aparecida Isidoro, doutoranda no PPGL em Língua Tuparí (tronco Tupi), mestre pela Universidade Federal de Rondônia.

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