Um dos maiores nomes da poesia concretista esteve na UnB para conversar sobre a revolução narrativa de escritor irlandês.

Radicalidade textual conjugada a minúcia artesanal na linguagem conferiram ao autor irlandês James Joyce a credencial de inventor do romance moderno. Foi no início dos anos 50 que dois jovens poetas brasileiros entraram em contato com a obra do escritor, que marcou tanto o percurso criativo quanto o universo reflexivo dos fundadores do movimento de vanguarda concretista: os irmãos Augusto e Haroldo de Campos. Na semana comemorativa dos 90 anos de Ulysses, o livro mais célebre do escritor irlandês, a UnB recebeu, nesta quinta-feira (14), justamente um dos maiores especialistas joyceanos, tradutor pioneiro de sua obra: Augusto de Campos. A um público numeroso e atento, o poeta apresentou, no auditório Dois Candangos, a palestra Panaroma do Finnegans Wake 1957-2012, repercutindo a contextualização histórica e suas impressões críticas dessa “invenção-matriz”, bem como o exercício lingüístico que resultou na “transcriação” de fragmentos da última e mais radical obra de Joyce.

Reverência e reconhecimento diante de um nome que é referência para os estudos joyceanos e de literatura de vanguarda no Brasil marcaram a fala de Piero Eyben, professor de literatura da UnB e coordenador do evento "BLOOMSDAY BSB 2012 – CêEmana BLOOM: 90 anos de Ulysses e 130 de nascimento de Joyce". Ao apresentar Augusto de Campos para o público, Piero ressaltou sua proeza transcriadora na recomposição de palavras, imagens, sons dispostos no poema-romance Finnegans Wake, publicado em 1939, após nele trabalhar por 17 anos. Em sua saudação inicial, Campos declarou: "Sinto-me um pouco um cidadão brasiliense. Um dos motivos é meu filho Roland Campos, que mora aqui e é professor de Física dessa universidade, além de minha neta estudante também da UnB e uma especialíssima galeria de amigos e interlocutores que tenho nessa cidade".


TRANSCRIAÇÃO -
“Finnegans Wake é um dos pilares de tudo que construímos”, afirmou Campos ao falar do deslumbre que há 60 anos desconcertou a ele e a seu irmão Haroldo, diante “dessa máxima invenção linguística”. Augusto aproveitou para contar que no Brasil, nessa época, “o máximo que o mercado editorial oferecia era uma versão em francês normativa, tradicional, limitativa, uma transposição que não funcionou criativamente, à altura de seu caráter inventivo”. Em 1952, deram, então, início à empreitada da tradução, “transcriação” como considera, mantendo seus singulares “trocadilhos e jogos verbais”, finalizando o trabalho em 1962. Segundo ele, esse projeto transcorreu em meio a um contexto hostil à poesia e à literatura de vanguarda.


“Para tradução intensiva, criativa, diferentemente da extensiva, exige-se tempo. Afinal foram 17 anos para construir uma obra prima. Em caso de um autor da altura de Joyce, para não se incorrer em trocadilhos infames, é necessário apuro formal e grande sensibilidade poética”, avaliou. Segundo ele, esse exercício de ginástica com a palavra, frente a um universo linguístico denso e inovador, influenciou muita gente, a exemplo do escritor curitibano Paulo Leminski e seu moderno romance experimental Catatau (1975).


Em sua explanação, Augusto ressaltou ainda outras influências importantes que repercutiram em seu ideário estético e criações literárias, como Pound, Mallarmé, Cummings e Mayakovsky. 

AMBIGUIDADES - Para o poeta, as mais de 600 páginas de Finnegans são como “areia movediça, sendo possível lê-lo a partir de qualquer ponto, uma prosa que se verticaliza em nome de uma abordagem infravocabular, ou seja, a palavra em si, quebrando tanto as estruturas tradicionais da narrativa quanto ocasionando uma profusão de neologismos. Joyce compreende a palavra como um feixe de som e harmônicos”. Como exemplo, menciona um vocábulo de 100 letras que ilustra uma queda e pressupõe o som de um trovão. De acordo com seu entendimento, o propósito dessa “palavra-montagem”, como das outras que compõem esse “texto de ruptura”, é onomatopaico, abrindo-se a ambiguidades semânticas e leituras simbólicas variadas.


Somada à preocupação estrutural e inovação linguística, Joyce se valeu de arquétipos e narrativas regionais da Irlanda para compor uma obra “ao mesmo tempo mítica e cosmopolita”. Em Finnegans, uma das personagens, Anna Livia Plurabelle, por exemplo, funde-se e se confunde com o rio Liffey, que atravessa Dublin, a capital irlandesa.
Por fim, Augusto escolheu uma passagem do livro, a partir de sua versão para o português, para ilustrar como Joyce cria unidades vocabulares (pensaventos, tremeluzes, lunávidos, onduleou, baluastros) e também o seu exercício de recriação do que chama de “palavras-valizes”. Campos encantou, então, o público com um fragmento no qual a menina-nuvem Nuvoletta corre em direção ao oceano, onde evapora e é levada para o céu, exibindo na seqüência vídeo, de 1983, com a prosa poética musicada por Péricles Cavalcanti e interpretação de Regina Casé:


Então Nuvoletta refletiu pela última vez em sua leve e longa vida e minguou todas as miríades de pensaventos num só. Cancéulou os seus compromissos. Subiu pelos baluastros; gritou um núvil nominho ninfantil: Nuée! Nuée! Um tule onduleou, ela passou. E dentro do rio que fora uma corrente (pois milhares de lágrimas tinham ido por ela e vindo por ela que era dada e doida pela dança e seu apelôdo era Missislifi) cai uma lágrima, minúltima lágrima, mais leve de todas as lágrimas (falo para os fãs de fábulas de radiamor, lunávidos pelo ar vulgar de estrelas de celenovelas), pois esta era a milágrima. Mas um rio escorregou lago por ela, sorvendo-a de um trago, como se mágua fosse água: Ora, ora, ora! Quem quer chora, Quem não quer vai-se embora!