Produção de shows e venda de produtos promocionais estão entre os recursos adotados para enfrentar a queda na venda de CDs provocada pelo barateamento das tecnologias, aumento do número de músicos produzindo, e fácil acesso a acervos musicais pelo computador.

É praticamente impossível passar um dia sem escutar música. No rádio, no toque do celular, ou até mesmo como trilha sonora de compras no supermercado, ela está sempre presente. No estudo Para além do iTunes, o professor e músico Marcelo Oliveira mostra que essa onipresença da música, desencadeada pelo aumento do número de pessoas produzindo e o fácil acesso a um acervo variado com apenas alguns cliques no computador, provocou uma mudança no perfil das gravadoras.


Com a queda das vendas de CDs, elas passaram a exercer também o papel de produtoras de shows e responsáveis pela venda de produtos dos artistas, como camisetas, bonés e outros do tipo promocional. “A indústria fonográfica foi perdendo poder e começou a se expandir para outras áreas”, afirma o autor da pesquisa, defendida pelo Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade de Brasília (UnB), sob a orientação da professora Beatriz Magalhães.


Marcelo cita como exemplo das mudanças os contratos assinados com artistas. Nas décadas de 70 e 80, as bandas interessadas em gravar um álbum assinavam um contrato de exclusividade com a gravadora escolhida. Hoje, os documentos são mais flexíveis. Havia também uma distinção muito clara entre a carreira de show, do qual o produtor era o responsável, e a carreira fonográfica, responsabilidade da gravadora. Já na primeira década do século XXI esses papéis se fundiram, dando à gravadora o controle empresarial total da vida do artista. “Temos hoje o contrato de 360°, que é onde a empresa participa de todas as atividades financeiras dos artistas: shows, venda de CD, músicas na internet, merchandising, tudo”, resume o pesquisador.


Essa mudança foi observada também no selo brasiliense GRV Discos, que o pesquisador escolheu para analisar como essas transformações aconteciam. Além de gravadora, a empresa atua como editora musical, produtora de eventos e agenciadora de artistas nacionais e internacionais desde sua fundação, em 2002. Entretanto, a gravadora independente mantém uma diferença das gravadoras globalizadas. “Na GRV cada artista grava do jeito que ele bem entende, ele tem a capacidade de gerar sua própria carreira”, explica o músico.


Para Marcelo, essa forma de parceria entre gravadora e artista representa um “caminho viável, saudável e possível de ser trilhado daqui por diante”, ao contrário do modelo tradicional adotado pelas gravadoras de grande porte, que controlam a criação artística dos músicos. O músico ainda defende que essa foi uma das razões pela qual a GRV Discos, um selo pequeno e de Brasília, sobreviveu à crise fonográfica mundial, responsável pelo desaparecimento de várias outras iniciativas fonográficas independentes da capital.


O pesquisador afirma que a pulverização da música foi uma das grandes responsáveis pela crise. “Desde sempre a indústria fonográfica foi baseada na reprodutibilidade de produtos físicos, mas a partir dos anos 90 as pessoas começaram a desmaterializar a música e se desapegaram do suporte físico”, explica. “Hoje em dia quem quiser ouvir uma música não precisa comprar o CD da banda, é só entrar no YouTube e a música vai estar lá. Não existe mais a preocupação de ter o objeto material para ter a música”, acrescenta.


Dados da Associação Brasileira dos Produtores de Discos, representante das maiores companhias fonográficas operantes no país, entre elas Sony Music Entertainment, Universal Music, Warner Music e Som Livre, confirmam essa pulverização. Em 2006, o mercado digital brasileiro, que inclui fonogramas digitais, vendidos pela internet ou por telefonias móveis, arrecadou pouco mais de R$ 8,5 milhões. No ano seguinte, ultrapassava R$ 42,8 milhões. Já a venda de CDs e DVDs, que em 2005 somava R$ 615,2 milhões, caiu para R$ 315,6 milhões em 2009. A associação apresentou ainda pesquisa de 2005 que mostra que mais de 2,9 milhões de brasileiros fizeram o download ilegal de músicas em sites e programas de compartilhamento, o que geraria mais de R$ 2 bilhões no setor.


BARATEAMENTO –
 As consequências diretas da queda do preço dos aparelhos fonográficos e de sua popularização também foram abordadas pelo músico. “Existem muitos lados envolvidos: os artistas, o público, a gravadora, a produtora, o empresário, e esses são apenas os principais”, explica, lembrando que o mais comum é que um dos lados seja ao mesmo tempo favorecido e prejudicado pelas mudanças.


A análise pelo lado dos artistas, por exemplo, apresenta as duas opções: por um lado, a popularização de equipamentos tornou possível que pessoas não profissionais da música pudessem criar produtos musicais com uma qualidade boa, ainda que não seja melhor que a de uma gravadora. Já por outro lado, essa facilidade culminou em uma saturação do produto, e, de acordo com Marcelo, produtos ruins. Ainda como ponto negativo, o pesquisador aponta o aumento da concorrência entre os músicos. “Apesar de ser mais fácil produzir música, é muito mais difícil se destacar e até mesmo sobreviver no ramo quando tem um monte de gente tocando o mesmo estilo que você”, justifica.


MUSIC BUSINESS –
 No estudo, Marcelo reconstruiu a história da indústria fonográfica, desde a invenção do fonógrafo por Thomas Edison, em 1877, passando por longos anos de transição do cilindro de cera – primeiro formato utilizado –, até o disco de alumínio, a fita, e o CD. O pesquisador lembra que junto à indústria fonográfica, surgiu a indústria da música. “A música sempre existiu, mas o music business surgiu apenas na indústria gravada, fonográfica”, explica.


Em decorrência do processo de atualização dos formatos e dos meios de gravação, veio também o barateamento desses meios e a disseminação do conhecimento de seus programas. “Na década de 80 quem fosse gravar um disco profissional iria precisar de uma fita que custava 300 dólares e suportava apenas 15 minutos de duração. Ou seja, para um disco de 45 minutos a banda já gastava 900 dólares só em fita, sem contar o gravador que custava 55 mil dólares. Hoje com 50 mil dólares você monta um estúdio de gravação caseiro muito bom”, ilustra o pesquisador.


O pesquisador não acredita a indústria caminha para o seu fim, apesar das mudanças. “As formas ilegais de se conseguir música na internet tiraram as defesas da indústria fonográfica, mas isso não significa o fim. Pirataria é uma coisa difícil de controlar, mas não é impossível”, completa.