Pesquisador avalia uma das principais tradições folclóricas brasileiras. Arte serve para afirmar valores como a masculinidade.

Não importa a afinação ou a beleza da voz. Neste “jogo musical”, o importante é a agilidade mental para responder e encurralar o adversário. No improviso e com graça. Foram estas características que despertaram a curiosidade do antropólogo João Miguel Sautchuk e o levaram a estudar o repente, também conhecido como “desafio” – uma tradição folclórica brasileira que remonta aos trovadores medievais. A arte, forte no nordeste do país, mistura poesia e música por meio da improvisação, com a criação repentina de versos por cantadores que se desafiam num embate de palavras.

“Até pouco tempo atrás, eu conhecia pouco do repente nordestino, também chamado de cantoria. Mas possuía alguns discos e admirava a habilidade dos repentistas para compor e cantar estrofes em segundos”, lembra o autor da tese de doutorado A poética do improviso: prática e habilidade no repente nordestino, defendida no Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília. A pesquisa foi feita junto a cantadores do Ceará, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte.


João Miguel conta que o interesse pelo tema surgiu em 2005, no primeiro ano de doutorado, quando constatou que não havia ainda nenhuma tese de Antropologia dedicada ao assunto. “Logo nas primeiras leituras que fiz, descobri que os cantadores improvisam seus versos de acordo com regras muito rígidas de métrica, rima e coerência temática", conta João. "Vi aí uma boa possibilidade de abordar a questão antropológica da relação entre regras e ação, entre estrutura e prática, que é o questionamento sobre como as formas instituídas da vida social se reproduzem nas ações e, inversamente, de como as ações estruturam a vida social”.

DISPUTA – A pesquisa revelou que o elemento central do repente é a disputa entre os cantadores, e que por meio do embate afirmam-se valores como masculinidade e prestígio. “Como só se canta em duplas, todo repentista precisa estabelecer e cultivar alianças com colegas. Por outro lado, o principal objetivo de um cantador é convencer o público de que é um poeta mais capaz que o companheiro. Ele traça autoelogios exagerados e dirige ameaças fictícias ao parceiro, além de compará-lo a coisas repulsivas”, explica. Segundo ele, a disputa ocorre mesmo quando se canta, por exemplo, temas como saudade e amor.

O antropólogo conta que, na cantoria, não costuma haver derrotas humilhantes nem vitórias inequívocas, mas o poeta que agrada mais ao público em uma ocasião tem maiores chances de receber convites para novas cantorias. De acordo com João Miguel, “o desempenho de um cantador na sucessão de suas apresentações tem papel fundamental na construção de seu prestígio e de sua imagem de bom repentista, junto a colegas e ouvintes”.

ETNOGRAFIA – Para pesquisar o repente nordestino, a estratégia de João Miguel Sautchuk foi se tornar, ele mesmo, um repentista. “Meu objetivo com isso não era imitar os repentistas, mas participar de seu fazer e a partir disso aprender como diferentes aspectos da cantoria – como a mensagem poética, as melodias cantadas, a regularidade do ritmo das estrofes e o caráter dialógico da construção poética – se entrelaçam em sua prática”.

Ele conta que, no início, não foi fácil. Além da própria complexidade desta arte, os cantadores acreditam que o repente não é coisa que se aprenda nem se ensine. Para eles, a poesia e as habilidades da cantoria são dons divinos que acompanham o poeta desde o nascimento – o que é em si um dado interessante. "Apesar disso, dois repentistas me aceitaram com o aprendiz. Consegui atingir um nível razoável na composição das estrofes, e era frequentemente convidado para tomar parte em cantorias”, conta.

Mas foi apenas assim que João Miguel entendeu como é construído o elemento principal do repente: o improviso. O repentista deve formular cada uma de suas estrofes no momento da apresentação. Isso requer esmero com as rimas utilizadas, com a métrica da poesia e com a coerência aos temas cantados. "Quer dizer, não se trata de um improviso ‘puro’, mas da criação a partir de um acervo de influências e esquemas cognitivos”, diz.

O orientador da tese, professor Wilson Trajano, destaca a relevância do trabalho de João Miguel Sautchuk. “Ele investiga um tema que é muito escorregadio para as ciências sociais, que é o tema da improvisação", afirma Trajano. "Sociólogos e antropólogos costumam trabalhar com regras. Mas essa tese, ao contrário, verifica o lugar da improvisação na vida social, por focar em um tipo de arte popular que tem na improvisação a sua ‘regra’, a sua habilidade maior”, considera.

Mulheres cantadeiras

De acordo com João Miguel Sautchuk, existem mulheres cantadeiras, mas elas representam uma minoria na classe dos repentistas e encontram dificuldades para sua atuação. “Pais e maridos não costumam permitir que saiam em viagem para cantar, e há uma discriminação dos cantadores em relação a elas”, conta o antropólogo.

Segundo ele, os cantadores homens consideram arriscado cantar com uma mulher. “Sendo elas adversárias teoricamente mais fracas, eles acreditam que ‘se bater não faz vantagem, e se apanhar faz vergonha’. Algumas cantadoras sabem explorar essa condição: aproveitam essa assimetria de poder para fazer provocações mais ousadas. Quer dizer, quando cantam com homens, buscam justamente atacar e ridicularizar sua masculinidade”.