Desde 2014, acordo de cooperação entre UnB e universidade nacional timorense permite pesquisas conjuntas

 

Casa Sagrada, ou Uma Lurik, em construção na cidade de Suai, no município de Covalima, em Timor-Leste. Relação de timorenses com estas edificações é objeto de estudo em uma das pesquisas realizadas por estudantes da UnB no país asiático. Foto: Renata Nogueira

 

Timor-Leste é o único país da Ásia e Oceania a adotar o Português como língua oficial (junto com a Tétum) e integra a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP). É também um dos países mais jovens do mundo, obtendo a independência em 2002. Desde 2004, tem sido um foco de pesquisa na UnB. Em 2016, três produções desenvolvidas no projeto Cooperação para pesquisa e formação em Ciências Sociais em Timor-Leste foram premiadas pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

 

Nos últimos quatro anos, de 2014 até agora, sete estudantes de graduação e cinco da pós-graduação do Departamento de Antropologia (DAN) realizaram pesquisa de campo no país asiático, apoiados pela Capes por meio de acordo de cooperação firmado entre a Universidade de Brasília e a Universidade Timor Lorosa'e (UNTL). "Diante de tudo isso, consideramos que já há um acumulado de reflexões brasileiras e internacionais sobre o Timor-Leste”, avalia o docente Daniel Simião, do DAN. A afirmação justifica a realização da 1ª Conferência da Associação de Estudos de Timor-Leste, seção Brasil (TLSA-BR), da qual o professor é organizador.

 

Parte desse acúmulo de aprendizados é resultado de um política de cooperação educacional empenhada pela Capes entre os anos 2005 a 2015, o Programa de Qualificação Docente e Ensino de Língua Portuguesa (PQLP). No período de uma década, foram enviados ao Timor 50 professores brasileiros, por ano, para colaborar com a estruturação do sistema educacional timorense, em especial com o fortalecimento do ensino do português. “Cada professor, desde que retornou, contribuiu para a difusão de aprendizados e conhecimentos sobre a cultura timorense”, destaca Daniel.

 

Boa parte dos estudos sobre o país envolvem as área de estudos literários, linguística, ciência política, educação, história e direito. Dada a trajetória do país, Timor-Leste atrai grande interesse de pesquisa pelo mundo. “É uma ilha do tamanho de Sergipe, com meio milhão de habitantes, que apresenta uma sobreposição complexa de visões diferentes de mundo”, descreve o pesquisador. Trata-se de um país que trabalha para a conservação de atividades de costumes e práticas ancestrais, ao mesmo tempo em que é um estado moderno, reestruturado segundo critérios chancelados pela Organização das Nações Unidas. “A experiência é tida como um laboratório de uma democracia estabelecida pela ONU”, avalia Simião.

 

Quem corrobora a ideia sobre a importância do país na pesquisa acadêmica é o professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Irlan Von Linsingen, também integrante da comissão organizadora da conferência. “Em uma busca rápida no site da teses e dissertações da Capes, levantamos com a palavra chave Timor-Leste um total de 137 pesquisas realizadas a partir de 2002, quando tiveram início os acordos de cooperação com o Brasil”, conta. Muitas dessas pesquisas foram realizadas pelos timorenses que vieram estudar no país.

 

HISTÓRICO – Timor-Leste (em tétum chama Timor Lorosa'e) é uma ilha do sudeste asiático que foi colonizada pelos portugueses em meados do século XVI. Foi também ocupada por holandeses, na porção ocidental da ilha e pelo Japão, entre 1942 a 1945, durante a Segunda Guerra Mundial. O país declarou-se independente de Portugal em 28 de novembro de 1975 e foi invadido e ocupado pelas forças indonésias nove dias depois. Foi incorporado à Indonésia em julho de 1976.

 

Nas duas décadas seguintes, ocorreram tentativas de pacificação malsucedidas. Nesse período, cerca de 100 a 250 mil pessoas morreram. Em agosto de 1999, houve um referendo popular, supervisionado pela ONU, em que a maioria da população leste-timorense votou pela independência da Indonésia. Três semanas depois, milícias timorenses anti-independência – organizadas e apoiadas por militares indonésios – iniciaram um levante violento. As milícias mataram aproximadamente 1.400 timorenses e forçaram 300 mil pessoas a se deslocarem como refugiados para a porção ocidental da ilha. O grupo também destruiu boa parte da infraestrutura do país, incluindo residências, sistemas de irrigação, sistemas de abastecimento de água, escolas e quase toda a rede elétrica.

 

Em 20 de setembro de 1999, tropas de paz enviadas ao país acabaram com a violência. Em 20 de maio de 2002, Timor-Leste foi reconhecido internacionalmente como um estado independente. De 2006 a 2012, foi estabelecida uma Missão Integrada da ONU em Timor-Leste (UNMIT), para consolidar a estabilidade na região.

 

O Brasil mantém relações diplomáticas com Timor-Leste desde a independência, em 2002. O relacionamento é marcado por vínculos culturais, decorrentes da herança lusófona comum e um programa de cooperação bilateral prestado pelo Brasil, que engloba setores fundamentais à construção do Estado timorense, como a consolidação da lusofonia e do sistema romano-germânico no ordenamento jurídico, temas de justiça e segurança, formação de mão de obra, educacional e de defesa. Em 2004, foi iniciado envio de professores brasileiros, no âmbito de programa de cooperação executado pela Capes para a região.

 

CONSTRUÇÃO DA COOPERAÇÃO – Os professores Suzani Cassiani e Irlan Von Linsingen, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), iniciaram a coordenação do Programa de Qualificação Docente e Ensino de Língua Portuguesa em 2009. Nessa fase, o Brasil contribuiu com a educação timorense em quatro frentes: formação de professores nas séries iniciais; formação de professores no ensino médio, principalmente nas disciplinas das Ciências da Natureza; ensino de Língua Portuguesa nos ministérios; curso de especialização na Universidade Nacional de Timor Lorosa'e (UNTL).

 

Segundo Suzani, foram vários os desafios para a empreitada, inclusive relacionados à ausência de um perfil adequado para a seleção dos cooperantes brasileiros. Ainda assim, a professora avalia que a jornada foi exitosa, com “muito aprendizado e várias pesquisas realizadas”. A avaliação se baseia nos relatórios semestrais apresentados pelos cooperantes e em observações in loco, por meio dos quais foi possível perceber números crescentes de atendimentos, além da ampliação da visibilidade que o programa adquiriu junto às instituições timorenses, como a UNTL e o próprio Ministério da Educação.

 

“Toda a aprendizagem gerada aos brasileiros envolvidos na atividade ao repensar os problemas timorenses também representa um enorme ganho”, acrescenta a pesquisadora. Entre os temas que foram surgindo ao longo dos anos, os coordenadores destacam o interesse em discutir os efeitos da colonialidade e da transnacionalização de currículos, que impunham certa forma de domínio sobre o saber e o poder.

 

“Em nossos estudos, inferimos que, em alguns aspectos, as cooperações internacionais acabam travando um monólogo eurocêntrico, verticalizado, em que o cotidiano e os saberes locais são silenciados”, aponta Irlan Von Linsingen. Segundo o docente, o resultado desta prática pode ser um ensino com ênfase na neutralidade, silenciando problemas locais e deixando de propôr a superação do analfabetismo, aprofundando subalternidades e outros efeitos nocivos da globalização.

 

Para que o Programa de Qualificação Docente e Ensino de Língua Portuguesa atuasse de forma oposta, várias ações foram implementadas. “Uma que nos pareceu importante foi a formação de grupos de estudos entre os cooperantes brasileiros, que foram construídos em reuniões pedagógicas semanais e visavam o planejamento das ações”, relata Irlan. O professor conta que esses encontros oportunizaram momentos de reflexão, a partir de análises e discussões de bibliografia de autores timorenses ou de estrangeiros que já haviam trabalhado naquele contexto, incluindo a aprendizagem da língua tétum.

 

De acordo com Irlan, alguns referenciais teóricos latino-americanos têm contribuído para repensar a questão da colonialidade, que envolve não só a invasão colonial na América Latina ou em Timor-Leste nos séculos passados, mas também questões atuais de dominação entre países com desequilíbrio de poder. “Os estudos sobre colonialidade nos apontam que é preciso ficar atento em processos como esse, pois pode haver uma perda de identidade cultural dos povos, que acabam sendo inferiorizados, racionalizados, subalternizados, desumanizados, provocando baixa autoestima, dependência, falta de pertencimento", alerta.

 

“Evidentemente, todas essas percepções servem de aprendizado para o Brasil”, conclui. Tanto que se entende a necessidade de possuir abertura em suas formas de pensar e saber viver numa nova cultura, respeitando o local sem querer colonizá-lo. “Palavras como cooperação, diálogo, alteridade, humildade, bom senso, escuta atenta, respeito às diferenças, sensibilidade, estudo, não devem ser chavões e, sim, vivências, incorporadas e constantemente auto-checadas”, aponta. 

Renata Nogueira pesquisa a relação dos timorenses com as Uma Luriks e deve concluir sua tese em julho de 2019. Foto: Beto Monteiro/Secom UnB

 

UNIVERSO ENTRE MUNDOS – A doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do DAN/UnB, Renata Nogueira, está pesquisando as políticas de patrimônio no caso das Casas Sagradas, as Uma Luriks, sob orientação da professora Kelly Silva. Por um ano e quatro meses, ela fez pesquisa de campo para observar a relação dos timorenses com essas casas cerimoniais ligadas à tradição local na relação do mundo humano com seus ancestrais.

 

Trata-se tanto de estruturas físicas, arquitetônicas, quanto da representação em um nível simbólico. Nelas, são realizadas práticas familiares, que não podem ser descritas como religião, como informa Renata. São celebrados marcos da vida: nascimentos, mortes e colheitas, além de homenagens e oferendas a ancestrais. Algumas casas, aliás, são construídas para serem reconstruídas tempos depois.

 

“É a unidade mínima de pertença às pessoas do Timor. Uma pessoa já nasce pertencendo a uma Casa”, explica. Com a invasão indonésia, boa parte das Casas foram destruídas. Com a reconstrução do país, o que se percebeu foi investimento governamental em políticas de salvaguardas para as Casas. A estudante acompanhou o movimento das pessoas saindo da capital, Dili, (onde se concentra a maior parte da população) rumo às áreas rurais, para as montanhas. Essas pessoas estavam em busca de estabelecer relação com os ancestrais nas Uma Luriks. “Significa o encontro dos leste-timorenses com seus ancestrais”, resume a estudante. Ela também acompanhou o ciclo da rotina de uma Casa, de acordo com o calendário litúrgico.

 

Segundo a pesquisadora, há relatos de combatentes timorenses que garantem ter conseguido resistir durante o período de conflito graças às Casas Sagradas e à benevolência dos ancestrais. Para Renata, a relação dos humanos com seus ancestrais e esse universo entre os dois mundos representam um desafio para os estudos antropológicos na região, em especial, para as narrativas construídas. “Para fazer uma etnografia, é necessário dar dignidade a essa realidade. É um desafio não transformar essa relação em um ponto exótico. É necessário pensar que esse é um modo legítimo de se relacionar no mundo e que podemos aprender com eles”, observa.

 

Casa Sagrada na cidade de Same, no município de Manufahi. Foto: Renata Nogueira

 

 

 

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