Situações vividas por mães – gestantes ou com crianças de até 180 dias de vida –, que recebem até meio salário mínimo, são objeto de dissertação

Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Avaliar o impacto do programa Bolsa Família na saúde das mães era o plano inicial de Laura Dal'Ava dos Santos no curso de mestrado em Saúde Coletiva na Universidade de Brasília. Mas as análises estatísticas realizadas por ela, sob a orientação de duas professoras, permitiram perceber que havia diferenças significativas quando se observava a situação mental, a insegurança alimentar e a percepção de qualidade de vida a partir do estado civil daquelas mulheres. Assim, as Repercussões da maternidade solitária na insegurança alimentar domiciliar, na saúde mental e na qualidade de vida entre mulheres em situação de pobreza viraram tema da dissertação de Laura.

 

Ela fez um estudo de caráter transversal com gestantes e mães de crianças com até 180 dias de vida, usuárias de Unidades Básicas de Saúde (UBS) em áreas de vulnerabilidade econômica no Distrito Federal. Em situação de pobreza – recebiam até meio salário mínimo –, essas mulheres autodeclararam-se solteiras, divorciadas, viúvas ou separadas quando questionadas sobre o estado civil. Foram coletados dados sociodemográficos, de consumo alimentar, situação de segurança alimentar e nutricional domiciliar, bem como presença de ansiedade e percepção de qualidade de vida.

 

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Das 526 mulheres consideradas na amostra da pesquisa, 49,1% estavam em maternidade solitária, 69,6% estavam em situação de insegurança alimentar e nutricional (IAN) e 66% delas apresentavam ansiedade. “Fomos surpreendidas logo na análise exploratória, que mostrou que quase 50% das mulheres em situação de pobreza viviam em maternidade solitária, participando com maior frequência do Programa Bolsa Família, apresentando índices maiores de ansiedade e vivenciando a insegurança alimentar e nutricional leve, moderada ou grave", conta a pesquisadora. Ela defendeu o trabalho em dezembro de 2020.

 

Essas mulheres apresentam menor percepção de qualidade de vida, com baixa autoestima, pouco apoio social, poucos recursos financeiros e sensação menor de segurança. "Esses resultados nos mostraram que, além de as mulheres viverem em situação de pobreza, elas ainda precisam enfrentar outras dificuldades e incertezas no seu dia a dia”, relata Laura, que é biomédica, mestre em Saúde Coletiva e, agora, doutoranda em Nutrição Humana também na Universidade de Brasília.

Laura Dal'Ava dos Santos estudou vulnerabilidades entre grávidas e puérperas em extrema pobreza no DF. Foto: Arquivo pessoal

 

No estudo, as mulheres em maternidade solitária que se encontravam em situação de vulnerabilidade socioeconômica eram mais frequentemente adolescentes, com menor nível de escolaridade. “Aproximadamente 70% da amostra estava em situação IAN (leve, moderada ou grave), o que pode gerar consequências na saúde da mãe e do filho, principalmente no seu desenvolvimento. Essas mulheres em maternidade solitária podem enfrentar a falta de apoio social e familiar, o abandono do parceiro, dificuldades financeiras, preocupações quanto ao cuidado e sustento dos filhos, a fome, entre outros fatores e que podem levar aos resultados encontrados no estudo”, aponta a autora da pesquisa.

 

De acordo com Laura, mulheres em situação de vulnerabilidade socioeconômica que vivenciam a maternidade solitária têm mais chances (68% a mais) de sofrer de transtornos mentais, como a ansiedade. Elas também têm índices maiores de pior percepção da qualidade de vida nos domínios psicológico (a chance é 71% maior), de relações sociais (84%) e meio ambiente (47%), se comparadas àquelas em igual situação econômica, mas que contam com um(a) companheiro(a). A pesquisadora lembra ainda que essa situação deve ser considerada a fim de melhorar e direcionar os cuidados e ações políticas e sociais ofertadas a essa população.

 

“Entendendo o contexto em que o Brasil vive, no qual uma parcela significativa das mulheres possui filhos e é chefe de família sem cônjuge, e considerando que essa situação é fator de risco a essas mulheres, seria importante que fossem disponibilizados – e que fossem acessíveis – programas direcionados à saúde mental desse grupo de mulheres, buscando atendê-las de forma mais específica”, comenta.

 

“Além disso, os programas de transferência de renda, condicionada ou não, poderiam beneficiar mais ou trazer uma ajuda maior às mulheres que se encaixam nesse perfil [chefe de família sem cônjuge e com filhos], tendo como exemplo o benefício emergencial de 2020, em que as mulheres chefes de família receberam uma parcela maior, buscando diminuir a perpetuação do ciclo intergeracional da pobreza”, pontua Laura. Ela ressalta também a necessidade de uma ação intersetorial em busca de melhoria na educação das mães e dos filhos e maior profissionalização, além de geração de empregos e ampliação de programas sociais.

 

Para a professora do Departamento de Nutrição (NUT/UnB) Muriel Gubert, orientadora de Laura no mestrado, este trabalho pode ajudar a formular políticas públicas específicas e a direcionar, por exemplo, decisões sobre quem receberá benefícios de determinados programas sociais.

 

“Ela traz um olhar importante, que é o olhar além da pobreza. Então, essas mulheres, além de estarem em situação de pobreza, têm outra vulnerabilidade, que é estarem sozinhas, não terem rede de apoio, companheiro ou companheira com quem possam dividir as atribuições, e muitas vezes elas têm jornada dupla, são mães e também as provedoras do lar”, detalha a docente.

 

“[Importante] o sistema público também lembrar que tem um ser humano ali que está vulnerável, sozinho, que não tem ninguém para dividir, que o atendimento no pré-natal muitas vezes tem que ultrapassar o mero exame físico. Temos que cuidar dessas outras repercussões, da questão da qualidade de vida dessa mulher e da saúde mental dela”, complementa Muriel Gubert.

 

COVID-19 – Muriel e Laura, apesar de não terem coletado dados durante a pandemia do novo coronavírus, estão certas de que o atual contexto piorou muito a situação das mulheres que já viviam em maternidade solitária e deixou outras tantas, que em condições normais não vivenciariam isso, mais vulneráveis a essa experiência.

 

Segundo Laura, “a partir da observação da situação econômica e social do Brasil atual, a tendência é a de que mais mães encontrem-se em situação de pobreza e vivenciem a maternidade solitária devido a inúmeros fatores: falecimento ou abandono do cônjuge (temos visto um aumento da violência doméstica e isso também pode ser um fator para divórcio/separação), perda ou diminuição da renda e, consequentemente, aumento da fome e preocupações com o sustento dos filhos”.

Pesquisadoras analisam que a pandemia pode ter agravado a situação de mães solitárias. Foto: Br-Freepic

 

Já a orientadora ressalta que a população em geral já está prejudicada quanto à saúde mental e qualidade de vida, e que, com certeza, está muito mais difícil para essas mulheres que não têm ajuda de companheiro ou companheira e também não têm mais o apoio social.

 

“Com o distanciamento, às vezes uma rede de apoio que ela tinha, alguém que podia cuidar da criança agora não pode. Ela tem que trabalhar, mas também tem a criança em casa o tempo todo. Então, com certeza a pandemia dificultou essas relações e agravou essa situação”, avalia.

 

Muriel pontua que a pesquisa reforça a necessidade de tratar as iniquidades de formas distintas. “Promover a equidade não quer dizer dar a mesma coisa para todo mundo. Tem públicos que são mais vulneráveis e por isso precisam de uma atenção maior. Esse público de mulheres mais pobres, em situação de maternidade solitária, é um grupo muitíssimo vulnerável e quando pensarmos em qualquer política pública, seja ela de saúde, assistência social ou emergencial agora nessa pandemia, esse tem que ser um público prioritário”, acredita a docente.

 

ESTUDOS – Agora no doutorado, Laura prepara-se para a coleta de dados da nova pesquisa, que pretende focar outro programa social e avaliar seu impacto, alcance, efetividade, adoção, implementação e manutenção. Desenvolver esses estudos na Universidade de Brasília, segundo ela, tem sido uma experiência única e muito prazerosa.

 

“A UnB me possibilitou realizar pesquisas que me permitiram enxergar as dificuldades, os medos, a carência e as alegrias de um público diferente, de mulheres-mães. Além disso, tive a oportunidade de fazer parte do Nesnut [Núcleo de Estudos Epidemiológicos em Saúde e Nutrição da UnB], formado por mulheres pesquisadoras extremamente competentes e amigas, durante o mestrado e continuo participando agora no doutorado, sendo orientada também pela professora da Universidade de Nevada (UNLV-EUA) Gabriela Buccini. Essas oportunidades permitem uma troca de conhecimentos e vivências sempre enriquecedora”, conclui.

 

INICIATIVAS PARA MÃES – Desde o dia 15 de abril, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) disponibiliza um campo no Currículo Lattes onde as mães podem informar o período de licença-maternidade. Na UnB, a articulação por formas de facilitar o cotidiano das mães é uma prática contínua. Em 2020, uma resolução aprovada na Câmara de Pós-Graduação (CPG) passou a garantir às mães em licença-maternidade prazo maior para credenciamento e recredenciamento em programas de mestrado e doutorado.

 

A Universidade também oferece auxílio-creche para estudantes com filhos de até cinco anos e tem negociado com o Governo do Distrito Federal a construção de uma creche no campus Darcy Ribeiro. A ideia é que também haja um centro de pesquisa vinculado, para viabilizar a implementação de proposta pedagógica diferenciada e promover estudos sobre a primeira infância. 

 

Além disso, existem redes de apoio organizadas para demandar as políticas necessárias à permanência das mães na instituição. "A UnB tem feito esforços para a permanência das mulheres na Universidade, em especial das mães que enfrentam mais dificuldades", explica a diretora da Diversidade, Susana Xavier.

 

A pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher (Nepem) Tatiane Duarte, que engravidou durante o doutorado em Antropologia, conta que as mães da Universidade têm se articulado para promover apoio mútuo. Uma das iniciativas é o Coletivo de Mães da UnB, que se reúne on-line desde 2016 pelo WhatsApp e tem debatido propostas que esperam serem levadas a efeito pela Universidade.

 

Tatiane passou a integrar o grupo recentemente, depois de tê-lo conhecido em uma roda de escuta para mães que promoveu durante a programação da UnB para o Mês da Mulher, em março. Ela espera integrar mais iniciativas do tipo. "Nesses anos que ficarei na UnB como colaboradora, minha intenção também é fazer parte de ações coletivas para as mães que nos sejam satisfatórias", compartilha.

 

O Coletivo de Mães da Universidade de Brasília tem o apoio da Coordenadoria das Mulheres da Diretoria da Diversidade (Codem/DIV). Para participar do grupo, é necessário mandar um e-mail para Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo. e solicitar a inscrição.

 

*Matéria atualizada em 6 de maio, para alteração e acréscimo de informações

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