Estudo etnográfico desenvolvido no Departamento de Antropologia explorou relação entre trabalhadores e dimensões técnicas da extração do látex

 

Habilidades na extração do látex são detalhadas em pesquisa como perspectiva para compreensão de outros vínculos estabelecidos pelos sangradores no processo produtivo. Foto: Eduardo Di Deus/LACT UnB

 

Cortes milimétricos, golpes sequenciais, passadas frequentes. O ofício de sangrador – como são conhecidos os seringueiros no noroeste do estado de São Paulo – exige habilidades precisas e cuidado no manejo das ferramentas. É essa maestria que possibilita extrair das seringueiras a seiva necessária para a produção da borracha natural. Em uma relação basicamente artesanal, as facas são objetos centrais no cenário em que se misturam trabalhadores, árvores e produção em escala industrial. A partir de uma dança, com ritmos, gestos e fluxos, surgem os primeiros contornos de toda a dimensão produtiva da matéria-prima, posteriormente utilizada na fabricação de pneus, luvas, utensílios de cozinha e outros itens da vida urbana.

 

É no interior paulista, na região de São José do Rio Preto, que se concentra mais da metade da produção nacional de látex. Na mesma cidade, o pesquisador Eduardo Di Deus, do Laboratório de Antropologia da Ciência e da Técnica (LACT), vinculado ao Departamento de Antropologia (DAN) da UnB, viveu parte da infância e pôde observar a expansão significativa das plantações de seringais com o passar dos anos, sobretudo após a década de 1990.

 

Os laços com aquele ambiente despertaram nele o interesse em desvelar as práticas cotidianas dos trabalhadores das plantações, para compreender um pouco mais sobre esses sujeitos e as conexões que estabelecem com os seringais. “Percebi que não havia nenhum estudo sociológico, nem antropológico, sobre esse grupo social em específico. Havia, por outro lado, uma tradição de estudos sobre os seringueiros da Amazônia”, justifica.

 

Registros inéditos dessa imersão compõem seu trabalho de doutorado, agraciado com o Prêmio Capes de Teses 2018, na área de Antropologia/Arqueologia. Intitulada A dança das facas: trabalho e técnica em seringais paulistas, a pesquisa, defendida pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, buscou se aprofundar, por um viés etnográfico, no caráter técnico da dinâmica de trabalho dos sangradores do noroeste paulista, como forma de reconhecer a importância desses atores na exploração industrial do látex.

Para desenvolver sua tese, o antropólogo Eduardo Di Deus se tornou aprendiz de seringueiro em fazendas do noroeste paulista. Foto: Raquel Aviani/Secom UnB

 

“Uma das principais contribuições é revelar a complexidade do protagonismo do trabalhador nos seringais, mesmo em uma relação de poder em que estão em uma posição de subalternidade, numa perspectiva histórica e a partir de uma visão que dialoga com os próprios termos e gramática que utilizam em suas práticas”, observa Eduardo, que também é professor na Faculdade de Educação (FE). O estudo foi financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

 

Em campo durante nove meses, o pesquisador circulou por fazendas da região e se inseriu na rotina desses trabalhadores como aprendiz de sangrador. Ao explorar as destrezas técnicas necessárias à realização do ofício, ele pôde se aproximar de suas vivências laborais e histórias individuais, compreendendo ainda outros níveis de relação que perpassam o engajamento produtivo, seja em termos dos laços com o patronato ou da própria lógica de organização familiar nas plantações. A experiência possibilitou ainda que presenciasse o desenvolvimento de boa parte da safra da borracha, que se estende por quase todo o ano.

 

Contemplado com a honraria da Capes, Eduardo confessa se sentir orgulhoso pela indicação. “O resultado não é de um trabalho individual como pesquisador, mas coletivo, com meu orientador e todos os colegas do LACT. Foi um processo de acúmulo de conhecimento”, diz.

 

TRABALHO ÁGIL E MINUCIOSO – “[A faca de sangria] é como se fosse a continuação do meu braço, mas de forma artificial; eu sinto com ela, como se fosse parte de mim; eu não sou nada sem ela, ela não é nada sem mim.” As palavras de Janilson – um dos sangradores que acompanhou Eduardo em campo –, em referência à declaração de um conhecido, apelidado de “Filósofo da faca”, evocam bem as aproximações entre ocupação, ferramentas e técnica no dia a dia dos seringais.

 

Antes do nascer do sol, os sangradores estão de pé para iniciar a jornada, a qual inclui o trato de setecentas a mil árvores diariamente. Todos os detalhes são essenciais nos vínculos produtivos com as seringueiras, do tipo de faca escolhida, amolação e formato da lâmina, aos gestos e destreza no corte A sabedoria do ofício é adquirida com o tempo de exercício, em um processo que mescla criatividade e experimentação, mas que demanda ritmo industrial.

 

Para imergir nesse universo, Eduardo aprendeu a sangria – como é chamado o ato de extração do látex – em um curso de iniciação. O aperfeiçoamento da técnica veio pela orientação de trabalhadores experientes. Nesse processo, adquiriu certa habilidade no manejo fino das facas. Sob o olhar atento de Janilson, cuja maestria foi herdada em um longo período como monitor em uma multinacional, o pesquisador compreendeu que é necessário ter sensibilidade, precisão e sutileza no ato de sangrar.

 

Entre os detalhes captados em suas observações, a profundidade das incisões era um dos critérios primordiais para um bom resultado: não poderiam ser muito rasas, a ponto de atrapalhar o rendimento da produção, ou tão profundas, que causassem ferimentos prejudiciais à vida útil das árvores. “A prática e as interações com os sangradores me permitiram compreender a relação entre dois aspectos fundamentais da sangria que devem ser balanceados: evitar ferimentos à ‘madeira’ (tecido lenhoso), mas construir um bom ritmo, veloz e eficaz”, explica o antropólogo.

 

Eduardo revela que a expertise também se estende ao conhecimento das especificidades da cultura. Tais aspectos incluem desde a sazonalidade da árvore, que leva cerca de sete anos após o plantio para estar pronta para a produção, condições climáticas e intervalos de extração, até o ciclo econômico da borracha. Na avaliação do pesquisador, são fatores com os quais os trabalhadores regulam e são regulados pelo processo produtivo. 

Imagem disponível na tese ilustra ciclo da extração do látex. Produção se dá ao longo de quase todo o ano. Arte: Marina Mendes da Rocha

 

“A produção é mantida pelos parâmetros que o próprio trabalhador vai controlando, como a profundidade que ele corta, a frequência de retorno a cada conjunto de árvores – eles não podem cortar todo dia, mas não pode deixar um intervalo muito grande – e o manejo que fazem desses sistemas”, explica Eduardo.

 

As diferentes etapas da cadeia foram registradas pelo pesquisador em um filme etnográfico, realizado durante suas investigações. Produzido no âmbito do Laboratório de Imagem e Registro de Interações Sociais (Iris), do DAN, Sangria (2015), título do curta-metragem, lança um olhar, sob uma perspectiva sensorial, ao fluxo da sangria, vislumbrando a experimentação da multiplicidade de técnicas e operações envolvidas.

 

Confira o filme na íntegra: 

 

RETROSPECTO – Em seu trabalho, Eduardo faz um mergulho histórico na implantação desses sistemas em São Paulo. A heveicultura, cultivo da seringueira, foi introduzida no interior paulista no início do século XX, após longo período de hegemonia da produção na região amazônica e dispersão da espécie por outras partes do mundo, por influência das grandes empresas pneumáticas.

 

A partir das transformações históricas, o antropólogo observou conexões entre as práticas e as próprias configurações da organização do trabalho, que influencia na relação com os patrões. “Em São Paulo, como o cultivo das seringueiras era secundário e foi crescendo num processo lento, optou-se pela parceria agrícola, com a residência do trabalhador na propriedade."

 

Essa lógica é compreendida por um tipo de sociedade, prevista em lei, que envolve a partilha da produção. Por não se tratar de um vínculo empregatício direto, cada parte envolvida deixa sua contribuição para o andamento da safra: enquanto o trabalhador oferece seus serviços, os proprietários das fazendas fornecem os recursos e os meios produtivos. O sistema se caracteriza ainda pela organização familiar do trabalho, comum nos seringais da região.

 

Nas fazendas por onde passou, o Eduardo di Deus pôde observar como as próprias rotinas balizam esse vínculo contratual, que também motivou a migração de sangradores de outros estados para São Paulo, em busca da autonomia pouco possibilitada pelo trabalho assalariado. “Nesse formato, o trabalhador é estimulado a gerar boa produção, já que sua renda está atrelada a isso. Embora sejam acentuadas outras formas de relação não-monetária, que também regulam a relação com as árvores, reduz-se o gasto dos patrões com fiscalização do trabalho”, sintetiza.

 

MAIS PREMIADOS – Além da tese premiada, dois trabalhos da UnB receberam menção honrosa nesta edição do Prêmio Capes. Na área de Biodiversidade, a pesquisa Controles Multiescalares Bióticos e Abióticos da Dinâmica e Decomposição de Detritos Foliares em Riachos, desenvolvida por Alan Mosele, do Programa de Pós-Graduação em Ecologia, foi uma das agraciadas. A reforma nos aspectos legislativos da migração no Brasil balizam as discussões da tese Por razões humanitárias : cidadanias, políticas públicas e sensibilidades jurídicas na reforma migratória brasileira, de João Guilherme Granja, premiada na área do Direito.

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