Pesquisadoras do Instituto de Psicologia da UnB identificam esta realidade em publicações científicas, mesmo quando o assunto é empreendedorismo feminino

Luis Gustavo Prado/Secom UnB


Na língua portuguesa, a desinência de gênero existe para indicar termos relacionados ao feminino e ao masculino. Mas, via de regra, utiliza-se o masculino como sendo a forma neutra da palavra, que engloba ambos os gêneros. O que um grupo de pesquisa da Universidade de Brasília identificou, porém, é que esta opção pelo masculino é adotada mesmo em artigos científicos que tratam exclusivamente do trabalho da mulher, ou seja, da empreendedora.


“Nós selecionamos três palavras-chave, que foram empreendedora no Brasil, mulher empreendedora brasileira e empreendedorismo feminino no Brasil e suas versões em inglês, e elegemos três bases de dados para a busca dos artigos. Os resultados evidenciaram que, mesmo buscando por empreendedora, aparecia empreendedor no centro dos resultados”, conta Noemia Santos, que é recém-doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade e servidora do Instituto de Psicologia (IP) da UnB.


Sua pesquisa, feita em conjunto com a orientadora, professora Carla Antloga, as recém-formadas no IP, Ariana Carvalho e Mariana Barbosa, e os pesquisadores estrangeiros Paolo Cottone e Alexander Hochdorn, resultou em um diagnóstico da situação da mulher empreendedora no Brasil.


O artigo científico, cujo tema é Female entrepreneurship in Brazil: how scientific literature shapes the sociocultural construction of gender inequalities (Empreendedorismo feminino no Brasil: como a literatura científica molda a construção sociocultural das desigualdades de gênero, em tradução livre para o português), foi publicado pela revista internacional Humanities and Social Sciences Communications, periódico de Humanidades do grupo Nature, em outubro. Segundo Carla Antloga, isso ocorreu depois de nove tentativas sem sucesso em revistas brasileiras.

 

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“Ele foi recusado aqui e foi aceito numa revista internacional que entendeu qual é a problemática de gênero que estamos denunciando, no fim das contas. Porque isso é uma denúncia. Você não pode tratar uma mulher que empreende como se ela fosse um homem, ou então ridicularizá-la dando panela como prêmio para inscrição na Semana da Mulher Empreendedora”, exclama a professora Carla Antloga, que também é coordenadora do grupo de estudos em Psicodinâmica do Trabalho Feminino (Psitrafem).


No artigo, as pesquisadoras e os pesquisadores afirmam que não pretendem tratar de aspectos socioculturais e políticos da questão de gênero, mas trazer luz ao uso dos termos escolhidos, tanto em português quanto em inglês, e, a partir daí, gerar uma discussão relevante.


“A língua não é só a forma como a palavra é usada, a língua é o que dizemos sobre o fenômeno e também o que não dizemos sobre o fenômeno. E não aparecem as mulheres”, analisa a docente.

O livro Empreendedorismo feminino: um olhar para o real é oriundo da tese de doutorado de Noemia Santos. Foto: Luis Gustavo Prado/Secom UnB


Uma das grandes preocupações do grupo é a omissão de cientistas quanto à compreensão do empreendedorismo feminino ou de como as mulheres se comportam ao empreender.


“Empreendedora não é o feminino de empreendedor. Assim como trabalhadora não é o feminino de trabalhador. São duas vidas, duas realidades completamente diferentes. A mulher que empreende, em regra geral, aproveita uma oportunidade, mas em função de uma necessidade. Se você diz que é tudo empreendedor, está banalizando a problemática da mulher que está trabalhando nessa área, nesse contexto”, argumenta Carla Antloga.


Ela ressalta que geralmente os homens que empreendem têm figuras femininas como a mãe, a esposa ou a irmã dando suporte, arrumando o local, cozinhando marmita ou cuidando de outros aspectos, como gerenciar a casa e os filhos no dia a dia enquanto ele cuida do negócio. Já as mulheres que empreendem o fazem cumulativamente com todas essas funções.


"A mulher empreende apesar disso tudo, porque ela faz todas as coisas ao mesmo tempo. E, ironicamente, as mulheres recebem muito menos financiamento para os negócios do que os homens. Aí, quando se tem que a maior parte dos negócios que fecha é de mulher, dizem que a mulher é incompetente. Não dizem que ela não teve suporte de lado nenhum para poder fazer o negócio dela”, provoca a professora.


EXEMPLO – Ariana Carvalho, uma das coautoras do artigo, fala com propriedade sobre o tema. Não apenas porque leu diversos trabalhos para a revisão de literatura proposta pelo grupo, mas porque sua mãe virou empreendedora quando a pesquisadora ainda era adolescente. Ela conta que no início, os pais eram sócios, mas após o divórcio, a mãe abriu sua própria loja de roupas.

O Grupo de Estudos em Psicodinâmica do Trabalho Feminino (Psitrafem) existe há oito anos no IP/UnB e hoje conta com cerca de 70 colaboradores do Brasil, da Itália e da França. Foto: Luis Gustavo Prado/Secom UnB


“Eu vi a dificuldade que minha mãe tinha no processo de trabalho, porque não era uma jornada de trabalho, eram várias. Então, apesar de eu e meus irmãos sermos maiores, ela ainda tinha que deixar o almoço pronto, ver quem ia fazer a feira, etc. E ela fazia tudo isso para depois pensar no trabalho dela”, rememora.

 
“Se meu pai ainda morasse lá em casa, a jornada dele seria só uma: ir para a loja, fazer o serviço dele, voltar para casa. Ele não tinha que pensar em diferentes fatores e em diferentes pessoas... pensar nos filhos, pensar nela, pensar na casa, pensar no animal de estimação, pensar em tudo”, relata Ariana, recém-egressa do curso de Psicologia da UnB. 


O cientista ítalo-alemão Alexander Hochdorn, que foi professor visitante da Universidade de Brasília por quatro anos e hoje atua como colaborador-pesquisador, também teve a situação da mãe como inspiração para estudar o tema. 


“Minha mãe sofreu muito as consequências de um casamento no qual foi duramente submetida pelo meu pai. Ela sempre foi feminista e me criou nesta perspectiva. Ela lutou para conseguir a maturità [equivalente ao Enem no Brasil] com 50 anos e reivindicar a autonomia própria como mulher, especialmente no nível de trabalho”, lembra ele, que é credenciado como orientador pleno no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações da UnB. 


Desde 2019, Alexander integra o grupo de estudos Psitrafem, onde conheceu as coautoras do artigo. Ele destaca que a parceria celebra a diversidade de formações acadêmicas e de culturas, muito importante no mundo científico internacional em que vivemos.


“Fizemos isso numa belíssima parceria. Paolo Cottone é um psicólogo social, eu fiz um doutorado em Ciências Sociais, a Noemia, um doutorado em Psicologia Clínica, e somos de países de culturas diferentes. Juntamos as nossas experiências, as nossas capacidades e foi, nesse sentido, um trabalho muito fluido, bem coordenado, bem ponderado entre nós”, avalia o ítalo-alemão.


Noemia Santos, Carla Antloga, Alexander Hochdorn e Paolo Cottone são, ainda, responsáveis pelo Acordo Internacional de Cotutela, vigente até 2026, que envolve a Universidade de Brasília e a Universidade de Pádua, na Itália, para estudantes de doutorado das duas instituições.

 

PSITRAFEM – O grupo de estudos em Psicodinâmica do Trabalho Feminino (Psitrafem) foi criado há oito anos pela professora Carla Antloga. Noemia Santos foi a primeira dali a receber titulação de doutora. Hoje estão em orientação, simultaneamente, 13 pós-graduandos entre mestrado e doutorado. 


Aproximadamente 70 colaboradores (pesquisadores, docentes, estudantes) de diversas universidades brasileiras e também italianas e francesas integram a iniciativa. 

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