Proposta inovadora associa o uso do látex à fototerapia de led para tratar feridas nos membros inferiores de pacientes diabéticos. No momento, a terapia está na Fase II do ensaio clínico e é testada em pacientes do Hospital Regional de Ceilândia

Lâmina de látex e equipamento móvel, componentes do Kit Rapha. Foto: Beatriz Ferraz/Secom UnB

 

Uma nova possibilidade para tratar o "pé diabético", complicação frequente em pessoas com diabetes mellitus, tem sido pesquisada na Universidade de Brasília. Trata-se do projeto Rapha, que em hebraico significa curar, e que associa o uso do látex (biomaterial com propriedades cicatrizantes) a um equipamento emissor de luzes de led, cujo princípio de ação é a fototerapia. A tecnologia utilizada é desenvolvida no Laboratório de Engenharia Biomédica (LaB), localizado na Faculdade UnB Gama, e o projeto é coordenado por Suélia Rodrigues Fleury Rosa, professora de Engenharia Eletrônica da Universidade de Brasília e pós-doutora em Engenharia Biomédica pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT/EUA). 

 

O chamado pé diabético ocorre quando uma área machucada ou infeccionada nos pés desenvolve feridas. Estudos demonstram que cerca de 20% a 25% dos pacientes diabéticos desenvolverão úlceras de membros inferiores em algum momento da vida. Quando não tratado adequadamente, o quadro pode evoluir para ulcerações crônicas e até amputações – o que acontece em 14% a 20% dos casos.

 

Apesar da gravidade desse problema, na literatura não há um método ideal para o tratamento do pé diabético. No Sistema Único de Saúde (SUS), o protocolo padrão adotado envolve o uso de alginato de cálcio ou espuma de prata. O projeto Rapha, da UnB, inova ao associar o uso de dois recursos que, separadamente, já são conhecidos por suas propriedades benéficas: o biomaterial látex e a fototerapia.

 

A fototerapia ou terapia por luz é um método com efeitos benéficos como analgésico, anti-inflamatório e cicatrizante. Atualmente o laser é recomendado para diversos tratamentos, mas nem sempre pode ser adotado por ser uma tecnologia cara. A solução proposta no Rapha é a fototerapia com uso de led.

 

“Nossa proposta inova ao utilizar a led, reduzindo o custo drasticamente e mantendo o poder de ação próximo ao do laser, o que já é comprovado na literatura. A lâmina de látex também é de baixo custo em relação aos protocolos que são adotados atualmente no SUS”, afirma a engenheira eletrônica Yasmin Carneiro Lobo Macedo, especialista em Engenharia Clínica pelo Hospital Israelita Albert Einstein e gerente do projeto.

 

Outro diferencial do projeto é diminuir a ida do paciente ao hospital, já que parte do tratamento ele passa a fazer em casa. “O Rapha nasceu com o objetivo de desospitalizar o paciente. Verificamos que diabéticos com feridas nos pés precisam ir muitas vezes ao hospital para cuidar da lesão e isso dificulta o tratamento. Geralmente, esse paciente tem dificuldade para se deslocar e, durante o trajeto, acaba expondo a ferida a ambientes propícios à contaminação, ou não consegue manter a glicemia controlada, o que prejudica ainda mais na cicatrização”, explica Suélia Fleury, que ressalta que o acompanhamento médico nunca pode ser dispensado, porém, passa a ter uma periodicidade reduzida.

 

Paciente utiliza o equipamento Rapha em ferida no calcanhar. Foto: Divulgação/Projeto Rapha

 

FUNCIONAMENTO – Para se tratar, o paciente recebe um kit Rapha, composto pelo equipamento móvel emissor de luzes de led, algumas unidades de lâminas de látex e outros itens básicos como soro fisiológico, álcool, gaze e luvas. De posse disso, o usuário deve fazer o autocuidado em casa diariamente.

 

O passo inicial é higienizar a lesão com uso de soro fisiológico e gaze. Em seguida, o paciente deve colocar luvas nas mãos para abrir a embalagem da lâmina de látex e aplicá-la sobre a ferida. Então, o equipamento de led deve ser colocado em cima da lâmina e fixado por meio de uma faixa autoadesiva que o integra. O próximo passo é ligá-lo, clicando no botão On-Off e, então, o próprio dispositivo começa a marcar 35 minutos, tempo necessário e suficiente para o procedimento. Passado o intervalo, o Rapha automaticamente é desligado, encerrando a emissão de luz e emitindo um alarme sonoro para avisar ao usuário que a sessão chegou ao fim.

 

Outra facilidade da terapia é que a lâmina de látex, por ser de material biodegradável e ter uma capacidade antibactericida, pode ser descartada em lixo comum. O tempo de tratamento varia de acordo com o quadro clínico do paciente, mas a estimativa média é de oito semanas, com o procedimento sendo realizado diariamente.

 

Carlos Emídio dos Santos Araújo, que tem 54 anos e é morador do Rio de Janeiro, participou da primeira fase de testes da pesquisa. Diabético e hipertenso, ele teve que amputar o pé direito devido a uma ferida que se agravou. As complicações também começavam a avançar no pé esquerdo quando ele iniciou o uso do Rapha. "Eu considero que o aparelho contribuiu bastante para o processo de cura, porque eu já estava tomando antibiótico e fazendo outros tratamentos, mas a cicatrização começou mesmo depois que passei a usar o equipamento", conta Carlos Araújo.

 

Ana Barbosa de Paiva, 80 anos, vinha tratando há dois anos, sem muito sucesso, uma lesão no calcanhar direito. Há cerca de três meses, porém, ela começou a participar do grupo de teste com o Rapha no Hospital Regional de Ceilândia. "Fazemos o tratamento em casa uma vez por dia e achamos bem fácil. Houve uma melhora evidente: a ferida está mais cicatrizada, mas ainda está aberta", conta Elizabete Barbosa Paiva, filha e cuidadora da dona Ana.

 

Equipe do Rapha e enfermeiras do HRT. Foto: Beatriz
A engenheira eletrônica Yasmin Lobo (de azul, ao centro) ao lado da professora Suélia Rodrigues (direita), acompanhadas das enfermeiras Marlene de Souza (na ponta, à direita) e Leila Souza, ao lado do professor de enfermagem da UnB Gustavo de Lima, no Hospital Regional de Ceilândia. Foto: Beatriz Ferraz/Secom UnB

 

HISTÓRICO – As pesquisas tiveram início em 2008 com a tese de doutorado de Suélia Rodrigues, que investigou propriedades e aplicações possíveis do biomaterial látex. Em 2013 o assunto foi aprofundado na tese de doutorado da engenheira elétrica Maria do Carmo dos Reis, que pela primeira vez propôs o sistema indutor de neoformação tecidual para pé diabético, testando um circuito emissor de luz de leds aliado à utilização do látex. O método foi observado em seis pacientes diabéticos com ulceração nos pés, atendidos no Centro do Pé Diabético do Hospital Regional de Taguatinga (HRT), e os resultados obtidos comprovaram melhoria no processo de cicatrização.

 

A continuidade da pesquisa se deu com o trabalho de conclusão de curso de Yasmin Lobo, em 2015, que aperfeiçoou o sistema eletrônico do equipamento móvel, formulou um protocolo de criação da lâmina de látex para produção em escala comercial e gerenciou um grupo multidisciplinar com 16 alunos de graduação e de mestrado que passaram a colaborar com a iniciativa.

 

No momento, o projeto está na Fase Clínica II, sendo testado em pacientes do Hospital Regional de Ceilândia – uma das etapas necessárias para que seja comprovada a eficácia desse método no tratamento do pé diabético. Leila Maria Sales Sousa, enfermeira do ambulatório do pé diabético do hospital, acompanha o ensaio clínico e está esperançosa quanto aos resultados. "Esperamos que essa proposta melhore a qualidade de vida do paciente e diminua o tempo que as lesões ficam abertas. Além disso, o número de pacientes é grande e, por isso, não podemos atender a todos diariamente. O Rapha vai possibilitar esse autocuidado diário", destaca.

 

PERSPECTIVAS – Referência no assunto, Hermelinda Pedrosa, endocrinologista,  presidente da Sociedade Brasileira de Diabetes e coordenadora do Polo de Pesquisa da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde (FEPECS) no Centro do Pé Diabético do HRT, acompanhou o Ensaio Clínico Fase I do Rapha no hospital. Ela conta que, à época, a terapia já se mostrava promissora, mas com uma correlação clínica a ser aprofundada. Com o desenvolvimento da pesquisa, a especialista torce para que o Rapha se mostre eficiente na cura do pé diabético.

 

“O atendimento a pacientes com pé diabético representa um custo grande para o sistema de saúde. O tempo de permanência no hospital geralmente é grande nos casos que exigem internação. Isso aumenta as chances de infecção e demanda muito uso de antibiótico, porque as bactérias são resistentes, além dos diversos procedimentos. A proposta de conseguir uma cicatrização rápida é fundamental para tentar manter esses pacientes em nível ambulatorial. Espero que essa pesquisa possa trazer novas luzes para agilizar a cicatrização, diminuindo o impacto na vida do paciente e da família”, afirma a endocrinologista.

 

A equipe à frente do projeto garante estar empenhada na conclusão das fases necessárias para que a terapia seja aprovada e disponibilizada à população. O Centro de Desenvolvimento Tecnológico da UnB é um parceiro estratégico nesse processo, pois, uma vez que a terapia seja aprovada, ele viabiliza o licenciamento tecnológico e realiza a seleção de empresa apta a produzir a tecnologia em larga escala.

 

Outra conquista recente do projeto foi o recebimento de R$ 166 mil do Ministério da Saúde, por meio do Departamento do Complexo Industrial e Inovação em Saúde. A verba será investida na aquisição de equipamentos para o laboratório do Gama para adequar a infraestrutura existente e garantir que as etapas finais da pesquisa sejam concluídas.  

 

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