Estudo na UnB aponta falhas na legislação, que podem gerar injustiças na distribuição de órgãos.

Estima-se que, em todo o Brasil, aproximadamente 70 mil pessoas aguardem por um transplante, mas são feitas somente 15 mil cirurgias, em média, por ano. Assim como nos demais países, a quantidade de pacientes supera o número de órgãos disponíveis, gerando um debate sobre o direito à vida: como suprir essa demanda da maneira mais justa?


Para o médico Fábio de Barros Correia Gomes, que abordou o tema sob o ponto de vista ético e jurídico na dissertação de mestrado Ameaças à equidade na distribuição de órgãos para transplante: uma análise dos critérios legais de acesso, a legislação atual, apesar dos avanços, ainda não é transparente quanto aos fatores empregados na escolha dos contemplados. O trabalho, orientado pela professora Débora Diniz, foi defendido no Departamento de Serviço Social (SER) da Universidade de Brasília (UnB).


Segundo a pesquisa, o risco de ocorrer injustiças decorre da existência de normas pouco claras sobre um assunto tão importante. Durante a dissertação, Gomes analisou leis, decretos e portarias do governo. Verificou que há mais de duas mil portarias no Ministério da Saúde sobre transplantes.


“Em geral, as normas são adequadas e buscam a equidade, mas são muito fragmentadas. Melhor seria um menor número de normas sobre transplantes”, afirma o médico. Na visão dele, a redução favoreceria o consenso nas práticas a serem adotadas para todos os casos.


A multiplicidade de normas contribuiu para o surgimento de diferenças substanciais, por exemplo, nos critérios de seleção de doentes que aguardam fígado ou medula. Ao invés de privilegiar a ordem da fila, optou-se por priorizar os doentes em estado mais grave, mediante classificação dos pacientes com base no estado de saúde deles. A avaliação é feita com o auxílio de um programa de computador.


“Após um ano da inclusão do critério de gravidade, notou-se uma alteração no perfil dos transplantados de fígado. Crianças e pacientes com câncer tiveram o acesso ampliado”, informa Gomes. Enquanto isso, quem aguarda córneas, coração, pulmão ou rins se sujeita aos critérios gerais de ordem de precedência na fila, morte iminente e distribuição eficiente (melhor resultado esperado de acordo com a necessidade de saúde). “Essa situação precisa ser revista. Se for o caso, adotar o critério da gravidade na alocação de outros tipos de órgãos”, defende.


Outro ponto questionado pelo médico é a utilização de uma portaria para modificar as condições para a alocação de fígado. A medida desrespeita a hierarquia jurídica, que impede a adoção de critérios por um instrumento normativo inferior à Lei dos Transplantes, de maior força, e ao seu decreto regulamentador.


DEBATE DEMOCRÁTICO -
Na prática, isso significa que, por melhor que tenha sido a intenção do Ministério da Saúde, autor do documento, foi omitida a participação do Congresso Nacional, responsável pela formulação das leis.


“A análise pelos deputados e senadores possibilita maior debate e participação da população, que pode julgar se a medida é justa, e, se for, estendê-la a qualquer tipo de transplante, e não somente a dois casos (fígado e medula óssea), como é hoje”, explica Gomes. Alterações por meio de decreto presidencial também ofereceriam maior visibilidade aos critérios de seleção.


Para o médico, existe ainda um outro problema que compromete a transparência e o controle social da distribuição dos órgãos. “Não se sabe quais os pesos atribuídos a cada um dos fatores para quem está na lista de espera. É preciso fazê-lo, complementando a atual legislação”, diz. A pesquisa de Gomes foi encaminhada às centrais estaduais de transplante, ao Sistema Nacional de Transplante do Ministério da Saúde e ao Conselho Federal de Medicina.


A indefinição sobre a maior relevância entre ordem de chegada, iminência de morte ou a distribuição eficiente abre brechas para que cada estado atue da forma que melhor lhe convier, o que pode gerar distorções no atendimento a pacientes que apresentarem as mesmas condições, mas tenham residência em diferentes unidades federativas e aguardam órgãos provenientes das regiões nas quais estão cadastrados.